segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

RESISTÊNCIA, VALORIZAÇÃO E RESGATE DA TRADIÇÃO CULTURAL ANDINA - Palestra realizada na PUC-MG em 2009

Resumo

A essência da tradição cultural na vasta região da Cordilheira dos Andes resistiu por meio de diferentes artifícios no decorrer de séculos após a conquista e recentemente encontra-se em uma situação de valorização e resgate. Esse processo é ambíguo e dialético uma vez que é explorado até como marketing político ao mesmo tempo em que reafirma a identidade cultural ameríndia e reforça importantes valores universais.


A milenar tradição cultural encontrada na vasta e diversificada área sul-americana conhecida como América Andina, foi forjada por meio da desafiante interação do ser humano com a imponente e instável natureza da região. Apesar dos séculos de perseguição e extermínio físico e cultural das populações andinas, estas ousaram resistir e um panorama atual é de resgate e valorização de suas tradições ancestrais.
Essa abordagem da resistência cultural de natureza ameríndia, em particular na região andina, corresponde a um esforço de destacar a sobrevivência de uma concepção de mundo e valores distintos ao padrão dominante de influência ocidental. Como escreve o filósofo Josef Estermann:
“Se trata de dar voz e expressão aquelas e aqueles que foram caladas/os pelo ruído triunfador das concepções e idéias importadas e impostas à força aos povos originários de Abya Yala . (...) É um dever histórico, o gesto de ‘devolução’ do próprio, maltratado, negado e supostamente extinguido.” ESTERMANN, Josef. Filosofia Andina – Sabiduria Indígena Para Un Mundo Mejor. Instituto Superior Ecuménico Andino de Teologia – ISEAT, La Paz – Bolivia, 2006, p. 10. tradução do autor. Obs: Abya Yala é o termo com que o povo originário Kuna do Panamá denomina ao continente americano em sua totalidade e significa “Terra em Plena Maturidade”, a utilização deste termo em substituição à América foi sugerida pelo líder aimara Takir Mamani, que propôs que todos indígenas o utilizem em seus documentos e declarações orais. Pesquisadores e pessoas em geral, próximas e ligadas ao universo indígena, têm utilizado o termo Abya Yala quando se referem ao continente americano. Além de Josef Estermann, também utilizaram esse termo em publicações: Alberto Ruz Buenfil, Carlos Milla Villena, Javier Lajo e Walid Barham Ode.

A América Andina possui como eixo central, no sentido norte–sul, a mais extensa cadeia de montanhas do planeta, ao nascente da cordilheira estende-se o manto verde da floresta amazônica e ao poente, um litoral desértico. A Cordilheira dos Andes possui vários picos que se elevam acima dos 6.000 metros de altitude, dos quais o degelo forma inúmeros lagos e rios que correm para a bacia amazônica ou para o Oceano Pacífico.
Próximo aos 4.000 metros, estende-se o altiplano, terras altas mais ou menos planas, cujas características principais são o clima frio e seco e os ventos gelados, nesta inóspita região, chamada de “puna”, somente espécies muito bem adaptadas como o “ichu” (um tipo de capim comum dos Andes), vários tipos de cactos, os camelídeos sul-americanos (lhamas, alpacas, guanacos e vicunhas), e alguns outros animais conseguem sobreviver.
A região é marcada por instabilidade sísmica e climática, possui intricados micro-climas, frágeis, interligados e complexos eco-sistemas, neste território “vivo”, pulsante, de inúmeros desafios, a caprichosa natureza impõe-se com toda a sua grandiosidade e força.
Nesse lugar, o ser humano, assim como as outras espécies animais e vegetais, teve que se adaptar para sobreviver, para tanto, buscou interagir e inter-relacionar com a natureza por meio do respeito, do temor e da reverência.
A partir destes fundamentos, elaboraram seus princípios, sua cosmovisão e cosmogonia, desenvolveram ciência e tecnologia, filosofia e cultura, culminando em grandiosas civilizações.
O elemento natural foi tão determinante no processo de desenvolvimento cultural nos Andes que o filósofo Josef Estermann, de origem suíça mas radicado na Bolívia, utiliza o termo “Pachasofia” para definir o que seria uma filosofia andina, de origem muito antiga e que mantêm seus princípios em vigência.
O neologismo quetchua/aimara-grego Pachasofia é formado por Pacha do quetchua/aimara, que significa tanto o tempo quanto o espaço, o cosmos, o universo e a Terra; mais o termo grego sophia, que expressa o “saber” integral a respeito da “realidade”.
Cunhado por Fernando Manrique Enríquez e utilizado por Josef Estermann em sua obra “Filosofia Andina” , Pachasofia seria um nome para a rede de conhecimentos que expressam a “visão de mundo” – cosmologia – andina.
Essa rede de conhecimentos se baseia em princípios ainda hoje vivos na cultura dos povos da região andina, e seu fundamento básico é a relacionalidade, ou seja, tudo está relacionado, interligado, vinculado, conectado a tudo.
O princípio de relacionalidade mais os fundamentos “secundários” da Pachasofia: correspondência, complementaridade e reciprocidade , determinaram, na filosofia andina, uma ética essencialmente ecológica, onde as relações dos seres humanos com todas as outras formas de vida e manifestações da natureza devem ser calcadas no respeito e na reciprocidade.

Os princípios de Correspondência e Complementaridade referem-se à concepção indígena de um universo interligado por polaridades (dia e noite, céu e terra, masculino e feminino) que se cruzam perpendicularmente, a representação gráfica desse esquema seria justamente uma cruz conectando as diferentes dimensões espaciais, temporais e manifestações da realidade.

Já o princípio de Reciprocidade, pontua as inter-relações de todas as manifestações e seres do universo, incluindo as ações humanas que devem levar em conta esse fundamento como um princípio ético em todas as relações, seja entre os seres humanos e entre estes e as demais manifestações da natureza. Este princípio de reciprocidade, chamado de Ayni, estabelece as normas e a ética presente em todas as relações, sejam entre os seres humanos (runa kuna), ou entre os humanos e as forças da natureza, Apu kuna, ancestrais e deuses. Sobre essa milenar instituição andina, destacamos a obra “Ayni” do arquiteto e investigador peruano Carlos Milla Villena.
Porém, toda essa organização funcional e interligada do universo sofreu um terrível colapso com a chegada, invasão e conquista dos europeus no século XVI, o império inca, chamado de Tawantinsuyo (Quatro Cantos do Mundo), desmoronou diante dos intrépidos e aguerridos espanhóis, junto ruíram milenares crenças, dogmas e valores, uma verdadeira hecatombe para as populações autóctones. Quanto às demais instituições indígenas, foram suprimidas, ou tentaram combatê-las os conquistadores espanhóis.
No entanto, muito do mundo indígena sobreviveu, resistiu à conquista, colonização e ao processo de extermínio, físico e cultural, que já dura mais de 500 anos. O escritor peruano Manuel Scorza relatou e denunciou, por meio de seus livros , a luta das comunidades indígenas contra os poderosos latifundiários e as mineradoras estrangeiras, em plena década de sessenta do século XX. O ciclo de livros de Manuel Scorza conhecido como “A Guerra Silenciosa”, que denuncia a situação de camponeses andinos e que como o próprio autor define relatam “uma crônica exasperadamente real”, é integrado pelas novelas: “Redoble por Rancas” (1970), “Garambombo, el Invisible” (1972), “El Jinete Insomne” (1976), “Cantar de Agapito Robles” (1976) e “La Tumba del Relámpago” (1978).
Um exemplo de resistência cultural apresenta-se na utilização das línguas nativas, principalmente o quetchua e o aimara, idiomas falados por milhares de pessoas em países andinos e que atualmente são amplamente difundidos e ensinados em escolas. Existem até mesmo revistas e suplementos de jornais bilíngües (espanhol/aimara e espanhol/quetchua), com grande tiragem em cidades como La Paz.
Sobre o resgate das línguas e sua relação com a resistência cultural, deve ser mencionado o importante trabalho do casal boliviano Manuel Quispe e Mari Mamani Tito, responsáveis pelo importante Centro de Integração e Investigação Oral em História Andina – Paka-Illa , que tem como uma de suas metas, registrar a tradição oral aimara.
Outro exemplo, é a existência de uma instituição social, econômica e política muito anterior aos incas, o ayllu. Base social, cultural e da identidade indígena andina, existem, atualmente, centenas de ayllus em países como o Peru e a Bolívia.
O ayllu é um agrupamento humano, que pode ser considerado como uma comunidade ou tribo, formada muitas vezes por indivíduos aparentados, que guardam uma vinculação com um determinado território, obedecem a uma autoridade ou chefe local, o kuraka, e trabalham juntos, em mutirão, em um sistema de reciprocidade e ajuda mútua, na terra e em outras atividades, como na construção das casas dos membros da comunidade.
Além das tarefas de trabalho, os membros do ayllu, chamados de runa kuna em quetchua, também se unem para realizar seus ritos e celebrações. Em comunidade eles rezam, dançam e bebem juntos.
As relações estabelecidas entre os membros de um ayllu obedecem a normas muito antigas, estabelecidas pelos ancestrais e mantidas por meio da oralidade.
Uma característica dos ayllus, ainda presente na atualidade, é que seus membros tem como guardião ancestral e espiritual um elemento fantástico e de cunho mágico-religiosos que pode ser uma montanha, lagoa, animal ou outro totem, frequentemente um aspecto ou manifestação da natureza.
Um elemento cerimonial presente em todas as inter-relações de um ayllu, sejam entre runas kunas, seres-humanos e forças da natureza ou entre distintos mundos como o dos vivos e dos mortos, é a utilização de folhas de coca, que funciona como um intermediador ou elo entre os opostos ou polaridades.
Símbolo da relacionalidade presente na filosofia andina e de resistência cultural, as folhas da planta coca (Erythroxylum coca), assim como a entidade espiritual associada a ela chamada de Madre Cuca, é fundamental e imprescindível para a identidade autóctone andina . Trata-se de um arbusto típico da área de transição andino-amazônica, admirado por suas qualidades nutritivas, medicinais e mágico-religiosas.

Sobre a profunda e intrínseca relação entre a identidade, cultura e espiritualidade indígena e a coca, merece menção o trabalho da antropóloga norte-americana Catherine J. Allen que estudou e conviveu com a comunidade de Soncco, um ayllu do Distrito de Colquepata, Departamento de Cuzco, no centro sul do Peru.
Aliás, a coca deve ser considerada como um tenaz exemplo de resistência cultural, pois sofre intensa perseguição por sua associação com seu derivado: a cocaína.
Por ser a matéria prima da cocaína, o plantio de coca é associado ao narcotráfico e condenado por organismos internacionais que ignoram e desrespeitam a importância cultural da coca. Esse é um tema polêmico onde se percebe que a desinformação e confusão entre a coca e a cocaína são muitas vezes utilizadas como estratégias por aqueles que desejam combater e erradicar o plantio da planta, o que representa mais um capítulo na secular guerra contra os valores, tradições e a cultura ameríndia .
Apesar da permanência das línguas nativas e do ayllu, a invasão e conquista européia desarticularam quase todas as outras instituições autóctones e impuseram valores e princípios alienígenas ao universo indígena.
Para manutenção dos princípios fundamentais da filosofia e cultura andina, foi necessário desenvolver estratégias de resistência como o sincretismo, a mestiçagem e o hermetismo, que, junto à dissimulação e ao silêncio, as mantiveram vivas. Estes recursos possibilitaram a permanência da milenar tradição andina, em sua essência e por meio de suas diversas manifestações.
Os recursos de sincretismo e mestiçagem asseguram a sobrevivência de valores e manifestações originárias por meio da mistura e transfiguração dos elementos essencialmente autóctones a outros oriundos do colonizador europeu e mais recentemente, a elementos estrangeiros que também invadem os países andinos no processo de “globalização” .

Sobre o desafio representado pela “globalização” às tradições culturais indígenas, afirma Josef Estermann: “O que ocorreu faz 500 anos com o continente americano, se perpetua hoje em dia mediante a hegemonia econômica e cultural do Ocidente, por meio da ‘globalização’ econômica neoliberal e informática, sustentada e fomentada em parte pela filosofia pós-moderna. Nesse processo – que é de uma magnitude e ‘necessidade’ (no sentido de um determinismo histórico) muito maior que a própria Conquista – as concepções não-ocidentais do universo e do ser humano não tem ’ valor de mercado’ para poder competir com o paradigma dominante (que às vezes é o paradigma de dominação) ocidental. Quando muito são consideradas ‘idéias exóticas’ com um valor estético para a indiferença conceitual e ética do ser humano e da mulher pós-modernos. A concepção totalizadora da globalização econômica e cultural é a ponta do iceberg da modernidade e pós-modernidade ocidentais que uma vez mais demonstra sua aspiração supercultural e ‘totalitária’. Esta tendência universalista e totalitária só se pode realizar sob a condição de negar o ‘outro’ em sua alteridade. Uma das formas acadêmicas mais sutis de negação consiste no eurocentrismo e ocidentalismo dos mesmos critérios de negação e exclusão.” ESTERMANN, Josef. Filosofia Andina – Sabiduria Indígena Para Un Mundo Mejor. Instituto Superior Ecuménico Andino de Teologia – ISEAT, La Paz – Bolivia, 2006, p. 9 e 10. tradução do autor.


Utilizar as estratégia de sincretismo e mestiçagem não foi difícil, uma vez que, em sua essência, a cultura e tradição andina apresentavam uma “abertura” às novidades, valores e elementos externos. Isso é facilmente comprovado em uma análise da civilização inca, que integrou inúmeros elementos, incluindo mitos, tecnologias e valores de vários outros povos que se incorporaram ao universo incaico.
A utilização de terraços de plantação nas encostas das montanhas, por exemplo, não foram invenções incas, apesar de que garantiram o sucesso agrícola e a prosperidade do império, já eram utilizados por vários outros povos e nações da região, séculos antes da expansão incaica, o mesmo se dá com divindades e princípios da cultura inca que foram herdados de culturas mais antigas.
Com a invasão espanhola, a resistência militar inca persistiu após 1532 por mais algumas décadas fazendo uso de uma disciplinada cavalaria, formada por índios armados com armaduras e espadas de aço capturadas dos inimigos. Nas cidades incas rebeldes desse período, a arquitetura apresentava uma inovação nos telhados das casas, ao invés de tetos de palha, telhas de cerâmica copiadas dos europeus.
Depois de consumada a conquista, a essência dos cultos e rituais indígenas foi mantida debaixo do verniz católico, onde divindades incaicas e pré-incas se “converteram” em santos da igreja, um curioso exemplo é a figura de Santiago Matamouros, ícone da Guerra de Reconquista que culminou na criação do Estado Nacional Espanhol e que originou o brado de guerra dos soldados espanhóis: “Santiago”! Quando escutaram esse grito, junto aos disparos de arcabuzes e canhões, os índios não tardaram em associar o marcial santo católico à divindade incaica Illapa, senhor dos raios e trovões.
Nos dias de hoje, em plena era de comunicações instantâneas e espaços virtuais, o mundo tradicional andino mantêm seu vigor e faz uso de recursos tecnológicos e “modernidades” para prosseguir sua milenar história, atualmente existem inúmeros endereços eletrônicos na internet voltados para a difusão dos valores tradicionais e a cultura ancestral. Também é possível encontrar vários grupos musicais que fundem rock-and-roll e música eletrônica à tradicional música andina, muitas vezes com temas que aludem e exaltam elementos ancestrais e históricos como os antigos imperadores incas; povos pré-incas; à sagrada folha de coca; aos espíritos das montanhas, chamados de Apus e à Mãe-Terra, Pachamama.
Paradoxalmente, outro recurso de sobrevivência da milenar cultura andina, foi o hermetismo, que ao invés de buscar a interação com o elemento externo, tornou-se velado e inacessível, podendo revelar-se apenas a uns poucos iniciados e assumindo uma áurea mística e religiosa.
Com esse recurso, segredos e tradições foram zelosamente guardados e, não raras vezes, sepultados junto com seus guardiões, que desafiavam poderosas instituições como o Tribunal da Inquisição Católica. Por essa estratégia, desapareceram avanços tecnológicos e permaneceram intocados inusitados conhecimentos sobre a espiritualidade e metafísica indígena.
Curiosamente, conforme prediziam antigas profecias, a revelação e divulgação de muitos segredos se deram a partir do final do século XX e início do presente século, e, muitas vezes, foram motivadas pela busca de não-índios pelos conhecimentos secretos dos antigos. Essa insólita situação despertou o interesse de jovens de origem indígena (que até então só tinham os olhos voltados às sedutoras e cômodas “modernidades” do mundo “globalizado”) para as tradições milenares de seus antepassados.
A própria existência destas profecias representa um elemento de resistência, ao mesmo tempo em que são fomentadoras de um processo de resgate, ressurgimento ou releitura do passado andino. Elas são perfeitamente coerentes com a concepção indígena de tempo que, diferente do paradigma ocidental, o concebe como um fenômeno cíclico, que pode ser representado como uma espiral (divergindo da comum representação em forma de linha) .

Sobre a concepção indígena do tempo, na obra "Quapaq Ñan: La Ruta Inka de Sabiduría", o pesquisador peruano Javier Lajo relata como lhe foi ensinado por seu próprio pai, do povo indígena puquina, que o cosmos se assemelha às ondas ou círculos concêntricos perfeitos desenhados sobre águas translúcidas de um tanque quando nelas se atira uma pedra, por esse artifício pedagógico, seu pai lhe demonstrou a “Lei Geral do Movimento e do Tempo”.

No modelo ou paradigma indígena, a repetição, retorno ou alternância de situações é um fenômeno “natural”, assim como o são todos os demais ciclos da natureza: o dia e a noite, as estações do ano solar, as fases da lua, períodos de seca e de chuvas e o ciclo menstrual da mulher. Além de se encaixar no modelo cíclico de tempo, este elemento revela outra curiosa percepção temporal dos povos andinos, novamente, contrário à visão ocidental, a tradição andina “enxerga” o passado à frente e o futuro às suas costas.
Para compreender este extravagante paradigma (ao menos aos olhos ocidentais), devemos recorrer às principais línguas nativas andinas, o quetchua e o aimara, pois elas revelam a curiosa relação entre passado e futuro para esses povos. Nessas línguas os termos que se referem ao passado, nayrapacha, ñawpa e ñawpaq, possuem sua raiz etimológica nayra e ñawi (aimara e quetchua respectivamente), que significa olhos. Portanto o que se vê “adiante” é o passado.
Já o vocábulo quepa/quipa (aimara e quetchua), que significa “costas” é usado para descrever o futuro. O poético ensinamento disso é que enquanto não conhecemos o futuro (ele está às nossas costas), o passado apresenta o exemplo dos antepassados, o histórico de milênios de sábia adaptação do ser humano à realidade de uma natureza desafiadora, como é a paisagem andina. Para a tradição andina o futuro está “para atrás” e o passado “adiante”.
Para um runa kuna, ou ser humano membro de um ayllu, a história seria uma repetição cíclica de um processo orgânico, correspondente à ordem cósmica e sua relacionalidade .
Coerente com essa concepção cíclica e orgânica de tempo existe, na região andina, diferentes versões sobre as distintas eras ou períodos de tempo que se sobrepõe como a alternância das estações do ano solar. Existe, por exemplo, a crença de que haveria cinco eras ou “sóis” :


1. O tempo primordial e a criação (pachakamaq).
2. O tempo dos antepassados (ñawpa machulakuna).
3. O tempo dos Incas e da Conquista.
4. O período “moderno”.
5. O Futuro.


Obs: Essa é a divisão de tempo que faz uma comunidade próxima ao nevado Apu Ausangate, o maior na região de Cuzco, e encontra-se em: GOW, Rosalind e CONDORI, Bernabé. Kay Pacha: Tradición Oral Andina. Centro de Estudos Rurais Andinos Bartolomé de Las Casas, Cuzco, 1976, p. 20-36.


É portanto no orgulhoso e nostálgico passado andino que muitas pessoas na região depositam suas expectativas e esperanças de tempos melhores, marcados pela valorização de sua cultura tradicional e originária. Nesse contexto, a concepção cíclica do tempo com suas profecias de retorno a tempos gloriosos e a uma “nova era dourada”, possuem uma insuspeita força e vigor, além de grande apelo emocional.
Dentre essas profecias destacam-se o mito do retorno de Inkarri , que seria uma espécie de messias andino, considerado como a reencarnação ou ressurreição do último monarca inca, ansiosamente aguardado por muitos e os ciclos de alternância de tempos de “luz” e “trevas”, como o dia e a noite que são delimitados por um período de caos que precede à ordem, chamado Pachakuti que significa: revolução, mudança, transformação do tempo, do espaço e do mundo.
Segundo as antigas crenças indígenas, vivemos exatamente em um momento de Pachakuti, uma era em que o mundo passa por profundas transformações que se manifestam no caos do qual emergirá uma nova ordem . Também segundo essas crenças, após a longa “noite” de 500 anos, inaugurada com a chegada dos europeus ao continente, a nova era será marcada pelo alvorecer de um tempo benéfico e de glória para os povos andinos.

Sobre o mito de Inkarri é interessante a interpretação de Walid Barham Ode em sua obra "Apu Pitusiray – Realismo Mítico – Una Experiencia Inmediata". No capítulo quarto: “O Retorno do Inka” a partir da página 157, o autor trata da “religião andina contemporânea”, o mito do “eterno retorno” (utilizando o conceito trabalhado por Mircea Eliade) e o conceito de “inconsciente coletivo” da psicologia junguiana.

Cada período de tempo, ciclo ou sol se enceraria com um Pachakuti, que corresponderia a um cataclismo cósmico, o universo voltaria a seu estado caótico e desordenado para depois se reordenar e formar outro cosmos ou outro ciclo cósmico.

Existem também diferentes versões sobre o início do atual Pachakuti, para alguns ele teria se iniciado no aniversário de 500 anos da chegada dos espanhóis à América, ou seja, 12 de outubro de 1992, é o caso de James Arévalo Merejildo, em "El Despertar del Puma – Evidencias astronómicas en los Andes". Já para outros, como informações colhidas pelo autor do artigo na região do vale do Vilcanota, próximo a Cuzco, o atual Pachakuti se iniciou quando de um grande alinhamento astronômico dos planetas do sistema solar em agosto de 1999. Para muitos, como o arquiteto peruano Carlos Milla Villena, até o solstício de inverno, em junho de 2009, estaremos no ano 516 do Quinto Sol ou ano 5.516 do “Calendário Aymara”, uma vez que cada era, ou sol, corresponderia a 1.000 anos solares. Um sol, por sua vez, seria composto de duas partes de 500 anos cada, como um “fractal” do dia e da noite, 500 anos seriam de “luz”, enquanto os outros 500 de “trevas”.
O forte apelo de um Pachakuti é claramente percebido, inúmeras são as referências que se pode encontrar, por todos os lados nos países andinos, a esse importante mito. Desde o clamor de sacerdotes quetchuas e aimaras em cerimônias levadas a cabo em antigos centros cerimoniais pré-colombianos, até à propaganda eleitoral de alguns políticos, as alusões ao Pachakuti são notórias.
Na Bolívia, em especial, a massiva presença indígena na população e na cultura do país, aliados às dificuldades econômicas, fortalecem a expectativa e esperança de mudanças, acabando por contribuir efetivamente para que transformações concretas aconteçam no país. Nesse caso, o grande destaque é a recente eleição, inédita, de um presidente de origem indígena, colocando em xeque séculos de domínio de uma elite minoritária de descendência européia. Como se não bastasse o fator étnico, Evo Morales surgiu politicamente como liderança dos plantadores de coca, a sagrada planta andina, tão combatida por ser a matéria prima da cocaína.
Sobre o presidente Evo Morales, trata-se de um erro dizer que ele “criou” a mística de uma “nova era”, um Pachakuti, para legitimar e fortalecer seu governo que declara oficialmente estar realizando uma “Revolução Democrática e Cultural”. Ao invés de causa, o governo de Evo é uma conseqüência do momento pelo qual passa não somente a Bolívia, mas também os demais países andinos, e que é marcado pelo forte anseio por mudanças, por um Pachakuti!
Astuciosamente, o governo de Evo vem utilizando esse elemento cultural, inclusive como estratégia de marketing político, porém, fugindo de possíveis análises críticas e julgamentos políticos sobre a condução do governo boliviano, é inegável o clima de otimismo e um “ar” de mudanças por quase todo o país .

O autor deste artigo estava na cidade de La Paz quando do aniversário de 1 ano de governo de Evo Morales, em janeiro de 2007, e pode presenciar este otimismo manifesto no clima de festa popular tanto durante a celebração oficial quanto depois em muitas ruas da cidade. O apoio a Evo era explícito ao se conversar com a gente e por meio das manchetes e notícias da imprensa paceña. Além de La Paz, o autor também pode testemunhar o apoio popular ao governo e à pessoa de Evo Morales em outras partes da Bolívia em que esteve entre 2007 e 2008, com destaque para a extensa região do altiplano. A oposição, ao contrário, era explícita e bastante hostil na cidade de Santa Cruz de La Sierra, principal foco de oposição ao governo.
Portanto, independente do aspecto político institucional da Bolívia, a cultura tradicional, com todos seus valores, manifestações, cores, cheiros, gostos e sons, vive, sem sombra de dúvida, um ressurgimento. A cultura tradicional, de origem indígena, é valorizada em quase todo o território boliviano e goza até mesmo de apoio oficial.
Atualmente as celebrações e cerimônias anuais dos solstícios e equinócios, com destaque para a festividade do Willkakuti ou “Retorno do Sol”, durante o solstício de inverno, além do forte apelo turístico, se converteram em legítimas manifestações da identidade e cultura indígena, com o apoio oficial e a participação de lideres políticos, até mesmo a do presidente Evo.
Tendo sido por muito tempo proibida de se realizar, ou tendo que se esconder na celebração católica de São João (24 de junho) , o Willkakuti hoje é festejado no complexo arqueológico de Tihuanaco, e os sacerdotes aimaras realizam sua cerimônias e oferendas ao Sol e à Mãe-Terra, prevendo por meio de suas folhas de coca o futuro do país e de seu governante.

Foi inclusive em Tihuanaco que Evo Morales, no início de seu governo, foi empossado cerimonialmente por sacerdotes aimaras, fato semelhante ocorreu ao ex-presidente peruano Alejandro Toledo, que assumiu a presidência do país oficialmente em Lima e ritualisticamente na mundialmente famosa Machu Picchu.

A celebração do Wilkakuti (assim como seu correspondente quetchua, Inti Raymi) no dia de São João, 24 de junho, é mais um exemplo de sincretismo, uma vez que por seu caráter astronômico e solar, as celebrações de Wilkakuti e Inti Raymi eram em tempos pré-hispânicos realizadas, com precisão, no exato dia do solstício de inverno, que freqüentemente ocorre no dia 21 de junho ou às vezes no dia 20. Portanto a data astronômica é três ou quatro dias antes do atual calendário “oficial”.
Da mesma forma que na Bolívia, o anunciar de um novo tempo soa com vigor nos demais países andinos como o Peru e o Equador. O forte apelo de uma nova era também é explorado de diferentes formas nestes países e, algumas vezes, simplesmente não passa de mera propaganda ou marketing político.
Independente desse aspecto, o resgate e valorização das tradições milenares indígenas nos Andes é um fato que muito interessa a toda a humanidade . Isso porque, a trajetória da cultura andina não se constituiu por meio de teorias ou abstrações filosóficas, mas se forjou, na vivência, na experimentação e na prática, em um longo e lento caminhar do ser humano, que já dura milênios, e que sempre se moldou por valores essencialmente ecológicos.

Em sua tenaz luta pela sobrevivência e superação, em uma natureza imponente, generosa e hostil ao mesmo tempo, o ser humano andino nos legou importantes lições como sua ética ecológica; seus princípios de relacionalidade e reciprocidade, presentes na organização solidária do ayllu; sua reverência e respeito à natureza, sua consciência de uma ecologia integral e profunda. Esses exemplos da ancestral cultura andina nos possibilitam olhar para o passado e saber que ali se encontram novos e preciosos ensinamentos para o futuro de toda a espécie humana.



Abstract
La esencia de la tradición cultural en la extensa región de Cordillera de los Andes hay resistido por medio de diversos artificios durante siglos después de la conquista y se queda recientemente en una situación de la valuación y del rescate. Este proceso es ambiguo y dialéctico una vez que se explota hasta como marketing político al mismo tiempo donde reafirma la identidad cultural amerindia y consolida valores universales.

Palabras-llave:
América andina - Resistencia Cultural - Tradiciones Ancestrales Indígenas


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