quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

UM TRIBUTO AO COYOTE ALBERTO RUZ

Conheci Alberto Ruz Buenfil no final de 2006, na época a Caravana Arco Íris Pela Paz estava em Belo Horizonte e Alberto e a Caravana trabalhavam em um projeto lindo, mágico e alucinado: a filmagem do longa metragem “Cocoré” do genial (e não menos alucinado) Túlio Marques, na época não podia imaginar como aquele encontro em volta do fogo mudaria para sempre minha vida!
Digo isso pois Alberto foi quem realmente me mostrou o que significa ser um Guerreiro do Arco Íris, o comprometimento visceral e afetivo com a Terra e o caráter transcendente e mágico do momento mítico em que vivemos aqui e agora.
Na época tinha inúmeros questionamentos sobre os calendários maias e a data de 2012. Pensei que por sua trajetória e vivência Alberto me traria esclarecimentos, na realidade ele, com toda a simplicidade de seu profundo e legítimo conhecimento do tema, me mostrou muito mais!
Não me esqueço de quando lhe perguntei sobre as diferenças e contradições das contagens de tempo do calendário proposto por José Arguelles em relação aos calendários ainda usados pelos maias da Guatemala, Alberto realizou um gesto com as mãos como serpentes a se cruzarem e me revelou sua tentativa de promover um encontro conciliador entre Arguelles e xamãs guatemaltecas afirmando que o momento é de união e antes das diferenças, deveríamos procurar nossos pontos em comum.
Obs.: Alberto é filho do arqueólogo Alberto Ruz Lullier, descobridor, em 1952, da tumba real na pirâmide das inscrições em Paleque e, ainda criança, foi um dos primeiros seres humanos, depois de 1.000 anos, a entrar no espaço mágico de sepultamento do poderoso rei-sacerdote maia Pacal. Conviveu sua infância com originários maias e se iniciou nessa Tradição.
Naquele nosso primeiro encontro compreendi porque esse incansável e valoroso guerreiro utiliza o arco de sete cores como símbolo: fora o aspecto estético e mágico, sua lição sobre a diversidade provém que nele cada cor possui suas qualidades particulares, mas somente todas juntas compõem a beleza do Arco-Íris, harmonicamente, em pé de igualdade e expressando a poética força sinérgica de todos serem um. Um arco, um símbolo, mas composto de sete cores, onde se faltar um, será outra coisa, não mais um Arco-Íris.
Alberto me fez perceber que o momento em que vivemos é a concretização do sonho mítico e ancestral de nossa amada Abya Yala, e mais, eu vinha com a cabeça cheia, cerebral, lógico e racional, o Coyote me mostrou que o que vale são os sonhos e o coração!
Conviver com ele, sua companheira Verônica e toda colorida e mágica turma da Caravana, participar das cerimônias, palestras e festas foi um honra e um grande prazer!
E mais, ele me fez ver a responsabilidade de assumirmos nosso papel de guerreiros nesse momento, de lutarmos bravamente pela Paz, a Harmonia e o Amor em Todas as Nossas Relações! Até aquele momento eu me contentava em buscar resgatar culturas milenares de Abya Yala por meio de pesquisas e investigações, escrevendo artigos, textos, roteiros e até livros, participando de expedições, realizando cerimônias e iniciações em Tradições ancestrais, mas percebi que ainda era pouco... Faltava colocar meu coração no jogo!
Depois daqueles dias durante o final de 2006, nos encontramos algumas outras vezes, me lembro com muito carinho da cerimônia no Parque Municipal de BH durante o TEIA – Encontro de Pontos de Cultura, quando foi lançando o filme “Cocoré”. Também tive um encontro mágico e sincrônico, no Rio de Janeiro, com sua companheira Verônica, justo quando eu estava a viajar para o México, e eles para a Inglaterra, estávamos todos na cidade maravilhosa atrás de vistos, e nos encontramos por “acaso” em um Café em Botafogo! Nessa viagem para o México, sua presença, força, lembrança e energia estiveram comigo em vários momentos. Fora isso, sempre tinha notícias suas pelos informes da Caravana via internet.
A última vez que nos vimos foi em janeiro de 2009, durante o Fórum Social Mundial em Belém, na ocasião estivemos juntos na Aldeia da Paz e participamos, com milhares de outras pessoas, da incrível passeata de abertura do Fórum pelo centro de Belém, que momento mágico! Principalmente depois da violenta chuva que caiu, lavando e purificando o evento, além de todos na rua, e do não mágico Arco Íris que se seguiu!
Na ocasião, pude curtir um pouco do carinho, da amizade e dos ensinamentos do velho Coyote, isso quando os desafios e batalhas da tenda de cura (onde colaborei uns dias) e os múltiplos afazeres de liderança da Aldeia (onde Alberto tinha que se multiplicar, custando até um pouco de sua saúde) permitiam. Porém a honra me veio quando ele me convidou para participar, tocando charango, da gravação das músicas e canções da Caravana. Momento mágico aquele! Aliás nunca escutei essas gravações, se por acaso alguém ler esse relato-tributo e souber dessas gravações favor me dizer.
Um ano após esse último encontro, Alberto está de volta ao México, e recebo seu e-mail com o texto final do livro “Nas Trilhas da Utopia – Movimento Comunitário no Brasil”, organizado pelo velho Coyote. Puxa que emoção! Só posso lhe agradecer companheiro, por sua dedicação, valor, coragem, fé, carisma, ensinamentos e por seu coração! Você é um espelho mágico no qual milhares de guerreiros, assim como eu, puderam e ainda poderão se contemplar!

Viva El Portuñol! Viva seus Sonhos e Viva esse Velho e Valoroso Coyote!

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

O RENASCIMENTO DAS CULTURAS ANCESTRAIS AMERÍNDIAS

Incas, Maias e Astecas e os ciclos cósmicos*

A chegada de Cristóvão Colombo à América, em 1492, nem de longe marcou o descobrimento do continente americano. Pesquisadores estimam que no momento em que os europeus aportaram, a terra já era habitada por cerca de 50 a 80 milhões de pessoas.

Os povos pré-colombianos, como passaram a ser conhecidos, eram de uma diversidade cultural impressionante, havia grupos nômades, que desconheciam o uso de metais e formavam comunidades relativamente simples, assim como sociedades complexas e impérios que os europeus, no seu afã de catequizadores e espoliadores, sequer imaginaram ou entenderam.

No mapa arqueológico e antropológico da América, ganham destaque duas áreas: a região andina, onde atualmente estão localizados o Peru, Bolívia e Equador (onde surgiram culturas como a Chavin, Moche, Nazca, Tiwanaco, e Inca) e a mesoamérica, conceito criado na década de 40 do século XX para descrever a área que compreende a América Central e sul da América do Norte que compreende territórios do México, Guatemala, Belize e Honduras (terra de civilizações como a Olmeca, Tolteca, Teotihuacana, Maia e Asteca).

Nessas tradições indígenas a vida foi medida por ciclos cósmicos que se sucediam como as estações do ano. O admirável conhecimento dessas culturas lhes possibilitaram conhecer tanto os ciclos que envolvem o planeta Terra, quanto os ciclos do céu através dos astros celestes e até os ciclos das criaturas vivas, inclusive o homem.

"Senhores do Tempo", os Maias possuíam um "calendário" de 260 unidades chamado de Tzolkin, que era o resultado da multiplicação de dois números sagrados, o 13 e o 20 (13x20=260). Funcionando como uma matriz, o Tzolkin servia para calcular e sincronizar diversos ciclos, um exemplo é a gestação humana que dura 273 dias (260+13).

Para os povos mesoamericanos , inclusive os Maias e Astecas, a atual humanidade teria sido precedida por quatro eras anteriores, chamadas de sóis, estaríamos, portanto, vivendo o "Quinto Sol". Semelhante tradição é encontrada na cordilheira dos Andes, onde grandes ciclos cósmicos foram chamados de Inti ou Sol, cuja duração seria de mil anos. Cada Inti era composto de duas metades de 500 anos cada uma, chamando-se Pachakuti cada meio Inti . Cada ciclo Pachakuti se identifica com a noite ou com o dia (um período de escuridão e outro de luz) e representa uma renovação da Terra, do tempo e do espaço, o caos transformador do mundo assinalando o início de um novo ciclo ou o amanhecer de um novo dia.

Para os Maias e Astecas também haveria um momento de mudança planetária. O ano de 1992 marca o início do último katun (período de mais ou menos vinte anos) do 13º baktun (144.000 dias ou pouco mais de 394 anos) do Grande Ciclo dos Maias de 1.872.000 dias ou 5.200 tun, que se encerra em 2.012. Já a tradição Tetzkatlipoka do povo Mexihka ou Asteca permaneceu oculta durante 468 anos (de 1521 até 1989) e, desde 1991, é aberta a todos que buscam a mais alta qualidade de vida e do desenvolvimento do ser humano.

Novamente coincidente com as culturas mesoamericanas, este amanhecer se manifestou, segundo a tradição andina, a partir de 1992, quinhentos anos após a chegada de Cristóvão Colombo à América, é o décimo Pachakuti e será marcado pelo retorno da sabedoria ancestral junto ao respeito e amor à Pachamama (para os Andinos) e Tonantzin (na língua nahuatl dos Astecas), ambos nomes dados à Mãe-Terra.




O Renascimento das Culturas Ancestrais Ameríndias
Parte II
O Ponto de Mutação

Para que se manifestasse uma cultura realmente global e planetária, a expansão promovida inicialmente pelos europeus, a partir do século XV, sobre a égide do capitalismo que se afirmava, foi um meio doloroso que, como um difícil parto, trouxe à luz a aldeia global.

Os ciclos de tempo que regem a dinâmica histórica dentro da perspectiva cósmica anunciam que, cumprida a expansão Yang/ masculina da civilização ocidental, industrial, capitalista, urbana e individualista, uma inversão da polaridade histórica está ocorrendo.

Neste novo tempo, Yin/feminino, amoroso, intuitivo e solidário, o retorno às culturas arcaicas soa como um chamado, inclusive anunciado através das inúmeras profecias indígenas que previam a pacificação do branco e a tolerância e união dos povos.

Na Profecia do Arco-Íris, de tribos da América do Norte, os seres humanos irão se reconhecer como irmãos, gerados em um sublime e divino ato de amor pela mãe-terra, Pachamama.

Existe uma profecia tibetana que anunciou a invasão chinesa e o deslocamento da polaridade energética planetária do hemisfério norte - que tinha na região do Himalaia sua fonte irradiadora e seu Axis Mundi no monte Everest ou Sagarmatha de 8.848m.s.n.m. - para a região da cordilheira dos Andes na América do Sul, sendo o Aconcágua, com 7.021 metros, seu pico sagrado.

Surpreendentemente, os pontos mais altos dos dois hemisférios do planeta, representados pelo Aconcágua no sul e Everest no norte, encontram-se ambos entre as latitudes 20o e 40o (sul e norte). Além disso, enquanto a cordilheira do Himalaia segue as longitudes de 70o a 90o leste, a cordilheira dos Andes está entre 60o e 80o de longitude oeste.

Também não deixa de ser surpreendente que uma profecia idêntica tenha sido revelada ao Aj'qij (xamã ou sacerdote do povo Maia dos altiplanos da Guatemala) Gerardo Kanek Barrios, pelos anciões deste povo. Em um de seus encontros com os anciões, ele levou um mapa mundi e o mostrou a um sábio maia que sorriu e, mesmo sem nunca ter visto um mapa do globo, lhe indicou o Tibet e revelou que dali partiu a corrente energética que deveria percorrer a coluna vertebral do planeta - representada por cadeias de montanhas - passar pela China, subir a parte oriental da Rússia, atravessar para o Alaska e dali "descer" pelas Montanhas Rochosas na América do Norte até o México, seguindo pela Guatemala e resto da América Central até ser detida pelo Canal do Panamá, que, segundo o ancião, estaria bloqueando seu caminho.

Superado o bloqueio, manifestado pelo canal administrado pelo EUA, a energia se dirigiria ao sul em direção à Amazônia para depois tomar o rumo dos Andes peruanos e bolivianos, ativando os centros energéticos da Pachamama.

Atualmente muito já se sabe e foi difundido sobre as tradições e sabedoria dos povos orientais como chineses, hindus, japoneses e tibetanos; porém, coerente com a idéia de alternância de polaridades, a cultura ameríndia deve ser resgatada e reexaminada; não para substituir os ensinamentos e tradições de outros povos, mas somar a esses, num processo dialético para estabelecer a síntese de uma cultura planetária comprometida com a Terra e com as gerações futuras de seres humanos.


*Texto publicado originalmento no Jornal Shambala

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

RESISTÊNCIA, VALORIZAÇÃO E RESGATE DA TRADIÇÃO CULTURAL ANDINA - Palestra realizada na PUC-MG em 2009

Resumo

A essência da tradição cultural na vasta região da Cordilheira dos Andes resistiu por meio de diferentes artifícios no decorrer de séculos após a conquista e recentemente encontra-se em uma situação de valorização e resgate. Esse processo é ambíguo e dialético uma vez que é explorado até como marketing político ao mesmo tempo em que reafirma a identidade cultural ameríndia e reforça importantes valores universais.


A milenar tradição cultural encontrada na vasta e diversificada área sul-americana conhecida como América Andina, foi forjada por meio da desafiante interação do ser humano com a imponente e instável natureza da região. Apesar dos séculos de perseguição e extermínio físico e cultural das populações andinas, estas ousaram resistir e um panorama atual é de resgate e valorização de suas tradições ancestrais.
Essa abordagem da resistência cultural de natureza ameríndia, em particular na região andina, corresponde a um esforço de destacar a sobrevivência de uma concepção de mundo e valores distintos ao padrão dominante de influência ocidental. Como escreve o filósofo Josef Estermann:
“Se trata de dar voz e expressão aquelas e aqueles que foram caladas/os pelo ruído triunfador das concepções e idéias importadas e impostas à força aos povos originários de Abya Yala . (...) É um dever histórico, o gesto de ‘devolução’ do próprio, maltratado, negado e supostamente extinguido.” ESTERMANN, Josef. Filosofia Andina – Sabiduria Indígena Para Un Mundo Mejor. Instituto Superior Ecuménico Andino de Teologia – ISEAT, La Paz – Bolivia, 2006, p. 10. tradução do autor. Obs: Abya Yala é o termo com que o povo originário Kuna do Panamá denomina ao continente americano em sua totalidade e significa “Terra em Plena Maturidade”, a utilização deste termo em substituição à América foi sugerida pelo líder aimara Takir Mamani, que propôs que todos indígenas o utilizem em seus documentos e declarações orais. Pesquisadores e pessoas em geral, próximas e ligadas ao universo indígena, têm utilizado o termo Abya Yala quando se referem ao continente americano. Além de Josef Estermann, também utilizaram esse termo em publicações: Alberto Ruz Buenfil, Carlos Milla Villena, Javier Lajo e Walid Barham Ode.

A América Andina possui como eixo central, no sentido norte–sul, a mais extensa cadeia de montanhas do planeta, ao nascente da cordilheira estende-se o manto verde da floresta amazônica e ao poente, um litoral desértico. A Cordilheira dos Andes possui vários picos que se elevam acima dos 6.000 metros de altitude, dos quais o degelo forma inúmeros lagos e rios que correm para a bacia amazônica ou para o Oceano Pacífico.
Próximo aos 4.000 metros, estende-se o altiplano, terras altas mais ou menos planas, cujas características principais são o clima frio e seco e os ventos gelados, nesta inóspita região, chamada de “puna”, somente espécies muito bem adaptadas como o “ichu” (um tipo de capim comum dos Andes), vários tipos de cactos, os camelídeos sul-americanos (lhamas, alpacas, guanacos e vicunhas), e alguns outros animais conseguem sobreviver.
A região é marcada por instabilidade sísmica e climática, possui intricados micro-climas, frágeis, interligados e complexos eco-sistemas, neste território “vivo”, pulsante, de inúmeros desafios, a caprichosa natureza impõe-se com toda a sua grandiosidade e força.
Nesse lugar, o ser humano, assim como as outras espécies animais e vegetais, teve que se adaptar para sobreviver, para tanto, buscou interagir e inter-relacionar com a natureza por meio do respeito, do temor e da reverência.
A partir destes fundamentos, elaboraram seus princípios, sua cosmovisão e cosmogonia, desenvolveram ciência e tecnologia, filosofia e cultura, culminando em grandiosas civilizações.
O elemento natural foi tão determinante no processo de desenvolvimento cultural nos Andes que o filósofo Josef Estermann, de origem suíça mas radicado na Bolívia, utiliza o termo “Pachasofia” para definir o que seria uma filosofia andina, de origem muito antiga e que mantêm seus princípios em vigência.
O neologismo quetchua/aimara-grego Pachasofia é formado por Pacha do quetchua/aimara, que significa tanto o tempo quanto o espaço, o cosmos, o universo e a Terra; mais o termo grego sophia, que expressa o “saber” integral a respeito da “realidade”.
Cunhado por Fernando Manrique Enríquez e utilizado por Josef Estermann em sua obra “Filosofia Andina” , Pachasofia seria um nome para a rede de conhecimentos que expressam a “visão de mundo” – cosmologia – andina.
Essa rede de conhecimentos se baseia em princípios ainda hoje vivos na cultura dos povos da região andina, e seu fundamento básico é a relacionalidade, ou seja, tudo está relacionado, interligado, vinculado, conectado a tudo.
O princípio de relacionalidade mais os fundamentos “secundários” da Pachasofia: correspondência, complementaridade e reciprocidade , determinaram, na filosofia andina, uma ética essencialmente ecológica, onde as relações dos seres humanos com todas as outras formas de vida e manifestações da natureza devem ser calcadas no respeito e na reciprocidade.

Os princípios de Correspondência e Complementaridade referem-se à concepção indígena de um universo interligado por polaridades (dia e noite, céu e terra, masculino e feminino) que se cruzam perpendicularmente, a representação gráfica desse esquema seria justamente uma cruz conectando as diferentes dimensões espaciais, temporais e manifestações da realidade.

Já o princípio de Reciprocidade, pontua as inter-relações de todas as manifestações e seres do universo, incluindo as ações humanas que devem levar em conta esse fundamento como um princípio ético em todas as relações, seja entre os seres humanos e entre estes e as demais manifestações da natureza. Este princípio de reciprocidade, chamado de Ayni, estabelece as normas e a ética presente em todas as relações, sejam entre os seres humanos (runa kuna), ou entre os humanos e as forças da natureza, Apu kuna, ancestrais e deuses. Sobre essa milenar instituição andina, destacamos a obra “Ayni” do arquiteto e investigador peruano Carlos Milla Villena.
Porém, toda essa organização funcional e interligada do universo sofreu um terrível colapso com a chegada, invasão e conquista dos europeus no século XVI, o império inca, chamado de Tawantinsuyo (Quatro Cantos do Mundo), desmoronou diante dos intrépidos e aguerridos espanhóis, junto ruíram milenares crenças, dogmas e valores, uma verdadeira hecatombe para as populações autóctones. Quanto às demais instituições indígenas, foram suprimidas, ou tentaram combatê-las os conquistadores espanhóis.
No entanto, muito do mundo indígena sobreviveu, resistiu à conquista, colonização e ao processo de extermínio, físico e cultural, que já dura mais de 500 anos. O escritor peruano Manuel Scorza relatou e denunciou, por meio de seus livros , a luta das comunidades indígenas contra os poderosos latifundiários e as mineradoras estrangeiras, em plena década de sessenta do século XX. O ciclo de livros de Manuel Scorza conhecido como “A Guerra Silenciosa”, que denuncia a situação de camponeses andinos e que como o próprio autor define relatam “uma crônica exasperadamente real”, é integrado pelas novelas: “Redoble por Rancas” (1970), “Garambombo, el Invisible” (1972), “El Jinete Insomne” (1976), “Cantar de Agapito Robles” (1976) e “La Tumba del Relámpago” (1978).
Um exemplo de resistência cultural apresenta-se na utilização das línguas nativas, principalmente o quetchua e o aimara, idiomas falados por milhares de pessoas em países andinos e que atualmente são amplamente difundidos e ensinados em escolas. Existem até mesmo revistas e suplementos de jornais bilíngües (espanhol/aimara e espanhol/quetchua), com grande tiragem em cidades como La Paz.
Sobre o resgate das línguas e sua relação com a resistência cultural, deve ser mencionado o importante trabalho do casal boliviano Manuel Quispe e Mari Mamani Tito, responsáveis pelo importante Centro de Integração e Investigação Oral em História Andina – Paka-Illa , que tem como uma de suas metas, registrar a tradição oral aimara.
Outro exemplo, é a existência de uma instituição social, econômica e política muito anterior aos incas, o ayllu. Base social, cultural e da identidade indígena andina, existem, atualmente, centenas de ayllus em países como o Peru e a Bolívia.
O ayllu é um agrupamento humano, que pode ser considerado como uma comunidade ou tribo, formada muitas vezes por indivíduos aparentados, que guardam uma vinculação com um determinado território, obedecem a uma autoridade ou chefe local, o kuraka, e trabalham juntos, em mutirão, em um sistema de reciprocidade e ajuda mútua, na terra e em outras atividades, como na construção das casas dos membros da comunidade.
Além das tarefas de trabalho, os membros do ayllu, chamados de runa kuna em quetchua, também se unem para realizar seus ritos e celebrações. Em comunidade eles rezam, dançam e bebem juntos.
As relações estabelecidas entre os membros de um ayllu obedecem a normas muito antigas, estabelecidas pelos ancestrais e mantidas por meio da oralidade.
Uma característica dos ayllus, ainda presente na atualidade, é que seus membros tem como guardião ancestral e espiritual um elemento fantástico e de cunho mágico-religiosos que pode ser uma montanha, lagoa, animal ou outro totem, frequentemente um aspecto ou manifestação da natureza.
Um elemento cerimonial presente em todas as inter-relações de um ayllu, sejam entre runas kunas, seres-humanos e forças da natureza ou entre distintos mundos como o dos vivos e dos mortos, é a utilização de folhas de coca, que funciona como um intermediador ou elo entre os opostos ou polaridades.
Símbolo da relacionalidade presente na filosofia andina e de resistência cultural, as folhas da planta coca (Erythroxylum coca), assim como a entidade espiritual associada a ela chamada de Madre Cuca, é fundamental e imprescindível para a identidade autóctone andina . Trata-se de um arbusto típico da área de transição andino-amazônica, admirado por suas qualidades nutritivas, medicinais e mágico-religiosas.

Sobre a profunda e intrínseca relação entre a identidade, cultura e espiritualidade indígena e a coca, merece menção o trabalho da antropóloga norte-americana Catherine J. Allen que estudou e conviveu com a comunidade de Soncco, um ayllu do Distrito de Colquepata, Departamento de Cuzco, no centro sul do Peru.
Aliás, a coca deve ser considerada como um tenaz exemplo de resistência cultural, pois sofre intensa perseguição por sua associação com seu derivado: a cocaína.
Por ser a matéria prima da cocaína, o plantio de coca é associado ao narcotráfico e condenado por organismos internacionais que ignoram e desrespeitam a importância cultural da coca. Esse é um tema polêmico onde se percebe que a desinformação e confusão entre a coca e a cocaína são muitas vezes utilizadas como estratégias por aqueles que desejam combater e erradicar o plantio da planta, o que representa mais um capítulo na secular guerra contra os valores, tradições e a cultura ameríndia .
Apesar da permanência das línguas nativas e do ayllu, a invasão e conquista européia desarticularam quase todas as outras instituições autóctones e impuseram valores e princípios alienígenas ao universo indígena.
Para manutenção dos princípios fundamentais da filosofia e cultura andina, foi necessário desenvolver estratégias de resistência como o sincretismo, a mestiçagem e o hermetismo, que, junto à dissimulação e ao silêncio, as mantiveram vivas. Estes recursos possibilitaram a permanência da milenar tradição andina, em sua essência e por meio de suas diversas manifestações.
Os recursos de sincretismo e mestiçagem asseguram a sobrevivência de valores e manifestações originárias por meio da mistura e transfiguração dos elementos essencialmente autóctones a outros oriundos do colonizador europeu e mais recentemente, a elementos estrangeiros que também invadem os países andinos no processo de “globalização” .

Sobre o desafio representado pela “globalização” às tradições culturais indígenas, afirma Josef Estermann: “O que ocorreu faz 500 anos com o continente americano, se perpetua hoje em dia mediante a hegemonia econômica e cultural do Ocidente, por meio da ‘globalização’ econômica neoliberal e informática, sustentada e fomentada em parte pela filosofia pós-moderna. Nesse processo – que é de uma magnitude e ‘necessidade’ (no sentido de um determinismo histórico) muito maior que a própria Conquista – as concepções não-ocidentais do universo e do ser humano não tem ’ valor de mercado’ para poder competir com o paradigma dominante (que às vezes é o paradigma de dominação) ocidental. Quando muito são consideradas ‘idéias exóticas’ com um valor estético para a indiferença conceitual e ética do ser humano e da mulher pós-modernos. A concepção totalizadora da globalização econômica e cultural é a ponta do iceberg da modernidade e pós-modernidade ocidentais que uma vez mais demonstra sua aspiração supercultural e ‘totalitária’. Esta tendência universalista e totalitária só se pode realizar sob a condição de negar o ‘outro’ em sua alteridade. Uma das formas acadêmicas mais sutis de negação consiste no eurocentrismo e ocidentalismo dos mesmos critérios de negação e exclusão.” ESTERMANN, Josef. Filosofia Andina – Sabiduria Indígena Para Un Mundo Mejor. Instituto Superior Ecuménico Andino de Teologia – ISEAT, La Paz – Bolivia, 2006, p. 9 e 10. tradução do autor.


Utilizar as estratégia de sincretismo e mestiçagem não foi difícil, uma vez que, em sua essência, a cultura e tradição andina apresentavam uma “abertura” às novidades, valores e elementos externos. Isso é facilmente comprovado em uma análise da civilização inca, que integrou inúmeros elementos, incluindo mitos, tecnologias e valores de vários outros povos que se incorporaram ao universo incaico.
A utilização de terraços de plantação nas encostas das montanhas, por exemplo, não foram invenções incas, apesar de que garantiram o sucesso agrícola e a prosperidade do império, já eram utilizados por vários outros povos e nações da região, séculos antes da expansão incaica, o mesmo se dá com divindades e princípios da cultura inca que foram herdados de culturas mais antigas.
Com a invasão espanhola, a resistência militar inca persistiu após 1532 por mais algumas décadas fazendo uso de uma disciplinada cavalaria, formada por índios armados com armaduras e espadas de aço capturadas dos inimigos. Nas cidades incas rebeldes desse período, a arquitetura apresentava uma inovação nos telhados das casas, ao invés de tetos de palha, telhas de cerâmica copiadas dos europeus.
Depois de consumada a conquista, a essência dos cultos e rituais indígenas foi mantida debaixo do verniz católico, onde divindades incaicas e pré-incas se “converteram” em santos da igreja, um curioso exemplo é a figura de Santiago Matamouros, ícone da Guerra de Reconquista que culminou na criação do Estado Nacional Espanhol e que originou o brado de guerra dos soldados espanhóis: “Santiago”! Quando escutaram esse grito, junto aos disparos de arcabuzes e canhões, os índios não tardaram em associar o marcial santo católico à divindade incaica Illapa, senhor dos raios e trovões.
Nos dias de hoje, em plena era de comunicações instantâneas e espaços virtuais, o mundo tradicional andino mantêm seu vigor e faz uso de recursos tecnológicos e “modernidades” para prosseguir sua milenar história, atualmente existem inúmeros endereços eletrônicos na internet voltados para a difusão dos valores tradicionais e a cultura ancestral. Também é possível encontrar vários grupos musicais que fundem rock-and-roll e música eletrônica à tradicional música andina, muitas vezes com temas que aludem e exaltam elementos ancestrais e históricos como os antigos imperadores incas; povos pré-incas; à sagrada folha de coca; aos espíritos das montanhas, chamados de Apus e à Mãe-Terra, Pachamama.
Paradoxalmente, outro recurso de sobrevivência da milenar cultura andina, foi o hermetismo, que ao invés de buscar a interação com o elemento externo, tornou-se velado e inacessível, podendo revelar-se apenas a uns poucos iniciados e assumindo uma áurea mística e religiosa.
Com esse recurso, segredos e tradições foram zelosamente guardados e, não raras vezes, sepultados junto com seus guardiões, que desafiavam poderosas instituições como o Tribunal da Inquisição Católica. Por essa estratégia, desapareceram avanços tecnológicos e permaneceram intocados inusitados conhecimentos sobre a espiritualidade e metafísica indígena.
Curiosamente, conforme prediziam antigas profecias, a revelação e divulgação de muitos segredos se deram a partir do final do século XX e início do presente século, e, muitas vezes, foram motivadas pela busca de não-índios pelos conhecimentos secretos dos antigos. Essa insólita situação despertou o interesse de jovens de origem indígena (que até então só tinham os olhos voltados às sedutoras e cômodas “modernidades” do mundo “globalizado”) para as tradições milenares de seus antepassados.
A própria existência destas profecias representa um elemento de resistência, ao mesmo tempo em que são fomentadoras de um processo de resgate, ressurgimento ou releitura do passado andino. Elas são perfeitamente coerentes com a concepção indígena de tempo que, diferente do paradigma ocidental, o concebe como um fenômeno cíclico, que pode ser representado como uma espiral (divergindo da comum representação em forma de linha) .

Sobre a concepção indígena do tempo, na obra "Quapaq Ñan: La Ruta Inka de Sabiduría", o pesquisador peruano Javier Lajo relata como lhe foi ensinado por seu próprio pai, do povo indígena puquina, que o cosmos se assemelha às ondas ou círculos concêntricos perfeitos desenhados sobre águas translúcidas de um tanque quando nelas se atira uma pedra, por esse artifício pedagógico, seu pai lhe demonstrou a “Lei Geral do Movimento e do Tempo”.

No modelo ou paradigma indígena, a repetição, retorno ou alternância de situações é um fenômeno “natural”, assim como o são todos os demais ciclos da natureza: o dia e a noite, as estações do ano solar, as fases da lua, períodos de seca e de chuvas e o ciclo menstrual da mulher. Além de se encaixar no modelo cíclico de tempo, este elemento revela outra curiosa percepção temporal dos povos andinos, novamente, contrário à visão ocidental, a tradição andina “enxerga” o passado à frente e o futuro às suas costas.
Para compreender este extravagante paradigma (ao menos aos olhos ocidentais), devemos recorrer às principais línguas nativas andinas, o quetchua e o aimara, pois elas revelam a curiosa relação entre passado e futuro para esses povos. Nessas línguas os termos que se referem ao passado, nayrapacha, ñawpa e ñawpaq, possuem sua raiz etimológica nayra e ñawi (aimara e quetchua respectivamente), que significa olhos. Portanto o que se vê “adiante” é o passado.
Já o vocábulo quepa/quipa (aimara e quetchua), que significa “costas” é usado para descrever o futuro. O poético ensinamento disso é que enquanto não conhecemos o futuro (ele está às nossas costas), o passado apresenta o exemplo dos antepassados, o histórico de milênios de sábia adaptação do ser humano à realidade de uma natureza desafiadora, como é a paisagem andina. Para a tradição andina o futuro está “para atrás” e o passado “adiante”.
Para um runa kuna, ou ser humano membro de um ayllu, a história seria uma repetição cíclica de um processo orgânico, correspondente à ordem cósmica e sua relacionalidade .
Coerente com essa concepção cíclica e orgânica de tempo existe, na região andina, diferentes versões sobre as distintas eras ou períodos de tempo que se sobrepõe como a alternância das estações do ano solar. Existe, por exemplo, a crença de que haveria cinco eras ou “sóis” :


1. O tempo primordial e a criação (pachakamaq).
2. O tempo dos antepassados (ñawpa machulakuna).
3. O tempo dos Incas e da Conquista.
4. O período “moderno”.
5. O Futuro.


Obs: Essa é a divisão de tempo que faz uma comunidade próxima ao nevado Apu Ausangate, o maior na região de Cuzco, e encontra-se em: GOW, Rosalind e CONDORI, Bernabé. Kay Pacha: Tradición Oral Andina. Centro de Estudos Rurais Andinos Bartolomé de Las Casas, Cuzco, 1976, p. 20-36.


É portanto no orgulhoso e nostálgico passado andino que muitas pessoas na região depositam suas expectativas e esperanças de tempos melhores, marcados pela valorização de sua cultura tradicional e originária. Nesse contexto, a concepção cíclica do tempo com suas profecias de retorno a tempos gloriosos e a uma “nova era dourada”, possuem uma insuspeita força e vigor, além de grande apelo emocional.
Dentre essas profecias destacam-se o mito do retorno de Inkarri , que seria uma espécie de messias andino, considerado como a reencarnação ou ressurreição do último monarca inca, ansiosamente aguardado por muitos e os ciclos de alternância de tempos de “luz” e “trevas”, como o dia e a noite que são delimitados por um período de caos que precede à ordem, chamado Pachakuti que significa: revolução, mudança, transformação do tempo, do espaço e do mundo.
Segundo as antigas crenças indígenas, vivemos exatamente em um momento de Pachakuti, uma era em que o mundo passa por profundas transformações que se manifestam no caos do qual emergirá uma nova ordem . Também segundo essas crenças, após a longa “noite” de 500 anos, inaugurada com a chegada dos europeus ao continente, a nova era será marcada pelo alvorecer de um tempo benéfico e de glória para os povos andinos.

Sobre o mito de Inkarri é interessante a interpretação de Walid Barham Ode em sua obra "Apu Pitusiray – Realismo Mítico – Una Experiencia Inmediata". No capítulo quarto: “O Retorno do Inka” a partir da página 157, o autor trata da “religião andina contemporânea”, o mito do “eterno retorno” (utilizando o conceito trabalhado por Mircea Eliade) e o conceito de “inconsciente coletivo” da psicologia junguiana.

Cada período de tempo, ciclo ou sol se enceraria com um Pachakuti, que corresponderia a um cataclismo cósmico, o universo voltaria a seu estado caótico e desordenado para depois se reordenar e formar outro cosmos ou outro ciclo cósmico.

Existem também diferentes versões sobre o início do atual Pachakuti, para alguns ele teria se iniciado no aniversário de 500 anos da chegada dos espanhóis à América, ou seja, 12 de outubro de 1992, é o caso de James Arévalo Merejildo, em "El Despertar del Puma – Evidencias astronómicas en los Andes". Já para outros, como informações colhidas pelo autor do artigo na região do vale do Vilcanota, próximo a Cuzco, o atual Pachakuti se iniciou quando de um grande alinhamento astronômico dos planetas do sistema solar em agosto de 1999. Para muitos, como o arquiteto peruano Carlos Milla Villena, até o solstício de inverno, em junho de 2009, estaremos no ano 516 do Quinto Sol ou ano 5.516 do “Calendário Aymara”, uma vez que cada era, ou sol, corresponderia a 1.000 anos solares. Um sol, por sua vez, seria composto de duas partes de 500 anos cada, como um “fractal” do dia e da noite, 500 anos seriam de “luz”, enquanto os outros 500 de “trevas”.
O forte apelo de um Pachakuti é claramente percebido, inúmeras são as referências que se pode encontrar, por todos os lados nos países andinos, a esse importante mito. Desde o clamor de sacerdotes quetchuas e aimaras em cerimônias levadas a cabo em antigos centros cerimoniais pré-colombianos, até à propaganda eleitoral de alguns políticos, as alusões ao Pachakuti são notórias.
Na Bolívia, em especial, a massiva presença indígena na população e na cultura do país, aliados às dificuldades econômicas, fortalecem a expectativa e esperança de mudanças, acabando por contribuir efetivamente para que transformações concretas aconteçam no país. Nesse caso, o grande destaque é a recente eleição, inédita, de um presidente de origem indígena, colocando em xeque séculos de domínio de uma elite minoritária de descendência européia. Como se não bastasse o fator étnico, Evo Morales surgiu politicamente como liderança dos plantadores de coca, a sagrada planta andina, tão combatida por ser a matéria prima da cocaína.
Sobre o presidente Evo Morales, trata-se de um erro dizer que ele “criou” a mística de uma “nova era”, um Pachakuti, para legitimar e fortalecer seu governo que declara oficialmente estar realizando uma “Revolução Democrática e Cultural”. Ao invés de causa, o governo de Evo é uma conseqüência do momento pelo qual passa não somente a Bolívia, mas também os demais países andinos, e que é marcado pelo forte anseio por mudanças, por um Pachakuti!
Astuciosamente, o governo de Evo vem utilizando esse elemento cultural, inclusive como estratégia de marketing político, porém, fugindo de possíveis análises críticas e julgamentos políticos sobre a condução do governo boliviano, é inegável o clima de otimismo e um “ar” de mudanças por quase todo o país .

O autor deste artigo estava na cidade de La Paz quando do aniversário de 1 ano de governo de Evo Morales, em janeiro de 2007, e pode presenciar este otimismo manifesto no clima de festa popular tanto durante a celebração oficial quanto depois em muitas ruas da cidade. O apoio a Evo era explícito ao se conversar com a gente e por meio das manchetes e notícias da imprensa paceña. Além de La Paz, o autor também pode testemunhar o apoio popular ao governo e à pessoa de Evo Morales em outras partes da Bolívia em que esteve entre 2007 e 2008, com destaque para a extensa região do altiplano. A oposição, ao contrário, era explícita e bastante hostil na cidade de Santa Cruz de La Sierra, principal foco de oposição ao governo.
Portanto, independente do aspecto político institucional da Bolívia, a cultura tradicional, com todos seus valores, manifestações, cores, cheiros, gostos e sons, vive, sem sombra de dúvida, um ressurgimento. A cultura tradicional, de origem indígena, é valorizada em quase todo o território boliviano e goza até mesmo de apoio oficial.
Atualmente as celebrações e cerimônias anuais dos solstícios e equinócios, com destaque para a festividade do Willkakuti ou “Retorno do Sol”, durante o solstício de inverno, além do forte apelo turístico, se converteram em legítimas manifestações da identidade e cultura indígena, com o apoio oficial e a participação de lideres políticos, até mesmo a do presidente Evo.
Tendo sido por muito tempo proibida de se realizar, ou tendo que se esconder na celebração católica de São João (24 de junho) , o Willkakuti hoje é festejado no complexo arqueológico de Tihuanaco, e os sacerdotes aimaras realizam sua cerimônias e oferendas ao Sol e à Mãe-Terra, prevendo por meio de suas folhas de coca o futuro do país e de seu governante.

Foi inclusive em Tihuanaco que Evo Morales, no início de seu governo, foi empossado cerimonialmente por sacerdotes aimaras, fato semelhante ocorreu ao ex-presidente peruano Alejandro Toledo, que assumiu a presidência do país oficialmente em Lima e ritualisticamente na mundialmente famosa Machu Picchu.

A celebração do Wilkakuti (assim como seu correspondente quetchua, Inti Raymi) no dia de São João, 24 de junho, é mais um exemplo de sincretismo, uma vez que por seu caráter astronômico e solar, as celebrações de Wilkakuti e Inti Raymi eram em tempos pré-hispânicos realizadas, com precisão, no exato dia do solstício de inverno, que freqüentemente ocorre no dia 21 de junho ou às vezes no dia 20. Portanto a data astronômica é três ou quatro dias antes do atual calendário “oficial”.
Da mesma forma que na Bolívia, o anunciar de um novo tempo soa com vigor nos demais países andinos como o Peru e o Equador. O forte apelo de uma nova era também é explorado de diferentes formas nestes países e, algumas vezes, simplesmente não passa de mera propaganda ou marketing político.
Independente desse aspecto, o resgate e valorização das tradições milenares indígenas nos Andes é um fato que muito interessa a toda a humanidade . Isso porque, a trajetória da cultura andina não se constituiu por meio de teorias ou abstrações filosóficas, mas se forjou, na vivência, na experimentação e na prática, em um longo e lento caminhar do ser humano, que já dura milênios, e que sempre se moldou por valores essencialmente ecológicos.

Em sua tenaz luta pela sobrevivência e superação, em uma natureza imponente, generosa e hostil ao mesmo tempo, o ser humano andino nos legou importantes lições como sua ética ecológica; seus princípios de relacionalidade e reciprocidade, presentes na organização solidária do ayllu; sua reverência e respeito à natureza, sua consciência de uma ecologia integral e profunda. Esses exemplos da ancestral cultura andina nos possibilitam olhar para o passado e saber que ali se encontram novos e preciosos ensinamentos para o futuro de toda a espécie humana.



Abstract
La esencia de la tradición cultural en la extensa región de Cordillera de los Andes hay resistido por medio de diversos artificios durante siglos después de la conquista y se queda recientemente en una situación de la valuación y del rescate. Este proceso es ambiguo y dialéctico una vez que se explota hasta como marketing político al mismo tiempo donde reafirma la identidad cultural amerindia y consolida valores universales.

Palabras-llave:
América andina - Resistencia Cultural - Tradiciones Ancestrales Indígenas


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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A MORTE NA TRADIÇÃO ANDINA



1. Introdução
Analisar como a grande e antiga cultura andina concebia e relacionava-se com a morte e como essa tradição está mantida e permanece nos dias de hoje são os objetivos deste trabalho.
Essas concepções e ralações são uma parte dessa rica tradição e, como tal, podem ser interpretadas pela cosmovisão e filosofia dos antigos e atuais homens e mulheres andinos. Esses elementos compõe a chamada Pachasofia.
Utilizado pelo filósofo suíço Josef Estermann, o neologismo quechua/ aymara-grego Pachasofia define a gnosiologia ou rede de conhecimentos que expressam a “visão de mundo” – cosmologia – andina.
Buscar informações e pistas em obras literárias (listadas na bibliografia), aliado aos ensinamentos diretos e vivências que recebi em minhas peregrinações pela região, serão as fontes de minha análise.
Dentro da concepção pachasófica existe uma relacionalidade cósmica, da qual, um dos elementos é a complementaridade. Segundo esse princípio, tudo possui seu complemento, onde o complemento da vida é a própria morte.
Assim, estudar a morte na concepção andina é conhecer a vida, saber como se relacionar com esses dois extremos (vida e morte) que se complementam e são inseparáveis, dos quais nós, seres humanos, na qualidade de chakanas (pontes), somos os eixos que manifestam e ligam essas duas realidades.

2. Pachasofia
Assim como inúmeros outros aspectos da antiga (ao mesmo tempo atual) cultura andina, a concepção da morte encontra-se inserida dentro dos preceitos filosóficos que formam a Pachasofia.
A palavra Pachasofia é formada por Pacha do quechua/aymara, e significa tanto o tempo quanto o espaço, o cosmos, o universo e o planeta Terra; mais o termo grego sophia, que expressa o “saber” integral a respeito da “realidade”.
Um princípio fundamental dentro da Pachasofia é a relacionalidade ou “princípio holístico” que afirma que tudo está de alguma forma relacionado (vinculado, conectado) com tudo.
Uma interessante ilustração que representa o universo para a tradição andina, onde percebemos a preocupação com a relacionalidade universal, é o desenho do altar maior do Koricancha, o grande recinto sagrado da Cuzco incaica. Desenhado no século XVII, pelo nativo Juan de Santa Cruz Pachacuti Yamqui Salcamaygua, o altar maior apresenta a forma de uma casa. Como uma representação cosmogônica, esse desenho estabelece o universo – Pacha – como nosso lar, onde tudo está relacionado e encontra-se interligado.
O curioso é que, em grego, o termo oikos significa casa, e é a base para as palavras economia e ecologia. O fato de representar o universo como uma casa demonstra como a concepção andina é naturalista e desenvolveu-se a partir de princípios cuja corroboração está na própria natureza.
A relacionalidade, por sua vez, manifesta-se em princípios secundários que são: a correspondência, complementaridade e reciprocidade.
O princípio de correspondência descreve o tipo de relação que existe entre macro e micro cosmos, o céu e a terra, em cima e em baixo, divino e humano, orgânico e inogârnico, vida e morte.
A complementaridade determina que, para haver a plenitude, um elemento deve possuir seu complemento. Esse princípio encontra-se nos elementos atômicos (elétrons, prótons e nêutrons) e sua manifestação como partícula ou onda; nas trajetórias dos corpos celestes e nos “pares”: Sol e Lua, claro e escuro, masculino e feminino, direita e esquerda.
Os princípios de correspondência e complementaridade podem se representados, esquematicamente por uma cruz que se forma a partir de duas “pontes” – chakanas que se cruzam.
Quando preenchidos com algumas de suas devidas manifestações, os campos de correspondência e complementaridade apresentam-se da seguinte forma:


COMPLEMENTARIDADE: loqe/esquerda/feminino
COMPLEMENTARIDADE: paña/direita/masculino
CORRESPONDÊNCIA: Hanan/alto/céu
CORRESPONDÊNCIA: Urin/baixo/terra


O terceiro princípio, a reciprocidade, é a expressão a nível pragmático e ético da relacionalidade. A reciprocidade estabelece que a cada ato corresponde, como contribuição complementaria, um ato recíproco. Este princípio estabelece o intercâmbio e determina as relações entre pessoas e manifestações religiosas. Trata-se de uma justiça ética, ser justo é uma obrigação para as pessoas andinas.
Outro elemento característico da Pachasofia é sua tripartição do universo, nesse esquema apresentam-se três “mundos” ou dimensões, cada um representado arquetípicamente por um animal ou totem:
• Hanan Pacha - o mundo "superior" ou "de fora", cujo animal é o condor;
• Kay Pacha - "este" mundo, representado pelo puma;
• Uju Pacha - o mundo "subterrâneo" ou "de dentro", seu animal é a serpente.
Neste esquema tripartido, um elemento de vital importância por representar o ponto ou eixo de ligação (por isso mesmo uma chakana) entre os mundos é o Kay Pacha, “este mundo”; onde se encontram os seres humanos vivos que possuem a responsabilidade ética de agirem conforme o princípio de reciprocidade, mantendo a harmonia cósmica ou, dependendo de sua conduta, provocando o desequilíbrio.
“Movendo-se” por essas três dimensões, todos os fenômenos do universo manifestam-se em algum ponto de correspondência e encontram-se representados em ambos os “lados” da complementaridade.
Um exemplo ilustrativo é a água. Esse elemento se manifesta no Hanan Pacha em forma de nuvens (elemento feminino) e ao cair do céu, como chuva, assume uma complementaridade masculina. No Kay Pacha é recebido pelo elemento feminino, a Terra, Pachamama.
Uma vez “neste mundo”, a água é feminina quando encontrada em lagoas (cochas) ou no oceano (mamacocha) e masculina nos rios (mayus).
Para completar o sistema tripartido, a água também adentra ao “inframundo” ou mundo subterrâneo, o Uju Pacha; aí se encontram os veios e canais de água subterrânea (masculino), as nascentes e “olhos d’água (feminino), que emergirão na superfície – Kay Pacha e, quando evaporarem, completar seu ciclo retornando ao mundo superior, Hanan Pacha.
Para a dinâmica e o movimento universal, a Pachasofia estabelece que tudo no cosmos possui um ciclo, no caso da água, a chuva e evaporação proporcionam essa dinâmica. Curiosamente, um fenômeno meteorológico associado ao ciclo da água, o arco-íris (K’uychi), é o símbolo do renascimento, inclusive da reencarnação.
Isso nos remete à situação de morte/vida, que, coerente com a Pachasofia, representa um elemento a mais dentro da rede universal de relações estabelecidas, possui seu ciclo e manifesta-se de diferentes formas.
Assim, como um complemento da vida, manifestando a ciclicidade, encontramos do “outro lado”, a morte.

3. A Morte na Tradição Andina
Serão nos princípios da Pachasofia que encontraremos os fundamentos para uma análise da morte dentro da Tradição Andina. Para isso, buscar-se-á na complementaridade, correspondência e reciprocidade as manifestações da morte.
Todo ser humano chega ao Kay Pacha através do nascimento, que ocupa um dos extremos de uma importante chakana ou “ponte” que é a própria vida desse ser humano. No outro extremo, estabelecendo o complemento e plenitude da vida, está a morte.

Nascimento
Vida
Morte

Porém, pela dinâmica universal, os princípios complementares de nascimento/morte e vida/morte alternam-se em ciclos.
Coerente com essa visão cíclica, o tempo na concepção andina é representado como um círculo, ou melhor, uma espiral, e não como uma linha como o é muitas vezes na tradição ocidental.
Isto determina que, para a Tradição Andina, a morte gera vida, e um fim sempre anuncia o recomeço. Esse processo encontra-se presente no ciclo agrícola, onde o “enterro/morte” das sementes gerará a vida manifesta na planta.
É por isso que antigos povos andinos possuíam o costume de enterrarem seus mortos em posição fetal, muitas vezes dentro de vasos de barro que assumem o papel de útero materno, no caso, da Mãe-Terra (Pachamama).
Belíssima metáfora essa que apresenta o vaso de barro, feito da própria terra, como útero da Pachamama. O corpo humano, matéria feita a partir dos elementos da própria terra, a ela retorna, para completar seu ciclo da mesma forma em que foi gestado: dentro de um útero. A posição fetal enfatiza essa associação nascimento/morte, apresentando-os como fenômenos análogos.
A popular canção andina “Vasija de Barro”, de autoria de Luis A Valencia e Gonzalo Benítez, e que já foi interpretada por diversos artistas, aborda esse tema com extrema beleza e poesia:

VASIJA DE BARRO
Autores: Luis A.Valencia y Gonzalo Benítez.
Yo quiero que a mí me entierrencomo a mis antepasados. En el vientre oscuro y frescoDe una vasija de barro.
Arcilla cocida y dura,alma de verdes collados, barro y sangre de mil hombres,Sol de mis antepasados.
Cuando la vida se pierdatras una cortina de años, vivirán a flor de tiempoamores y desengaños.
De ti nací y a ti vuelvo,arcilla, vaso de barro.Con mi muerte vuelvo a ti,a tu polvo enamorado.



Outro costume funerário dos antigos, que relaciona morte e nascimento, é que o morto era posicionado de maneira que estivesse com a face voltada para o leste, o ponto cardeal que anuncia a vida e nascimento.
Na região do lago Titicaca, encontramos antigas torres funerárias chamadas de chullpas, algumas são circulares e outras quadradas, porém quase todas possuem uma pequena entrada voltada para o nascente.
A forma de algumas dessas chullpas também nos lembra um útero, internamente elas possuem uma câmara que se assemelha a uma semente; é no interior dessa “semente” que era depositado o corpo do morto, em posição fetal, com a fronte voltada para a pequena porta da torre, orientada para o nascente.
Essas evidências apontam para a possibilidade de que os antigos acreditavam na reencarnação, crença bastante difundida e aceita atualmente pela população andina.
Segundo mestre Francisco Miranda – Rumisoncco, sacerdote e guardião da Tradição Andina, a reencarnação é um fundamento da tradição e possui o arco-íris como símbolo.
Importante chakana, que estabelece uma ligação entre o céu e a terra, o arco-íris representa a promessa de vida e o caráter cíclico dos fenômenos universais, é o símbolo da esperança e encontra-se, nos mitos de origem dos povos aymaras, associado ao princípio de vida.
Segundo alguns mitos, foi a partir do raio que se iniciou a vida, com esse fenômeno surgiram dois arco-íris, um masculino e o outro feminino, e daí veio toda a forma de vida, inclusive o ser humano, esse mito encontra-se ilustrado na bandeira de arco-íris conhecida como Wiphala.
Como o complemento do nascimento e da própria vida, a morte é encarada, na tradição andina, com grande naturalidade, um processo que compõe o equilíbrio cósmico.
Tanto nos relatos sobre os antigos, como no comportamento de pessoas hoje em dia, perceber-se essa relação de aceitação da morte como um fenômeno de ordem cósmica e, inclusive, uma superação do medo que esta inspira.
Quando os espanhóis chegaram aos Andes, se impressionaram com as demonstrações de coragem frente à morte por parte dos homens e mulheres.
No episódio da captura do imperador Atahualpa, em Cajamarca, centenas de índios desarmados colocaram-se, como uma barreira humana, entre os espanhóis e o Inca, sacrificando suas vidas tentando proteger o seu senhor.
E por que essas pessoas entregaram suas vidas para a salvação de outra? Para compreender esse ato é preciso analisá-lo de acordo com o princípio pachasófico de reciprocidade.
O princípio de reciprocidade estabelece que cada ato corresponde como contribuição complementaria um ato recíproco. É um princípio universal e rege tanto as inter-relações humanas (entre pessoas e grupos), como extra-humanas: ser humano e natureza ou ser humano e o divino. É uma obrigação ética, sagrada e muito forte ainda hoje na região andina. Um intercâmbio de bens, sentimentos, pessoas e valores religiosos.
Por isso que é muito comum na religiosidade andina a prática do pago ou despacho, uma maneira de restituir à divindade ou entidade transcendental (Pachamama, Apu, Huaca ou ancestral) através de uma oferenda, que é a reciprocidade simbólica e ritual.
Para as pessoas da época do império inca, o imperador, enquanto “Filho do Sol” e divinizado, era um elemento fundamental na manutenção da ordem cósmica, ele era o representante encarnado dessa mesma ordem e a ele deviam obediência, tributos e, caso fosse, a própria vida. Talvez mais que lealdade, tratava-se de um dever cósmico, e sua falta acarretaria o desequilíbrio.
Dentre os deveres de reciprocidade para com o imperador por parte das populações nativas estava a mita, que consistia no pagamento de tributo ao Estado na forma de trabalho em retribuição aos benefícios (segurança e sustento principalmente) proporcionados pelo fato de integrarem o império.
Esse tributo era cobrado pelo Estado inca quando havia a necessidade de mão-de-obra ou de soldados para campanhas militares. Composto por homens adultos de até cerca de cinqüenta anos, o grande contingente de trabalhadores proporcionado pela mita era aproveitado na construção de terraços de plantação, canais de irrigação, estradas, templos, palácios e até cidades inteiras.
Pela natureza da arquitetura e pelos materiais utilizados em suas edificações, as realizações incaicas exigiam grande esforço humano e muitas vezes os operários estavam sujeitos a grandes riscos de vida no canteiro de obras.
É impressionante o tamanho dos blocos de pedra que foram cortados, transportados (muitas vezes por quilômetros), suspensos e encaixados à perfeição pelos antigos trabalhadores indígenas. Além disso, muitas edificações incas encontram-se nas alturas escarpadas das montanhas, na borda de grandes precipícios. Essas realizações que hoje em dia encantam os turistas cobravam um alto preço em vidas humanas. Para realizá-las era necessário, além de determinação, grande coragem ou ausência de medo da morte.
Na região do vale do rio Vilcanota, no Peru, lugar conhecido como Vale Sagrado dos Incas, encontra-se o complexo arqueológico de Ollantaytambo. Na margem oposta ao conjunto de templos, terraços e demais construções incas, encontram-se as pedreiras de onde foram retirados e transportados os enormes blocos de pedra para as edificações.
Neste lugar encontramos muitos blocos que não chegaram a ser transportados até a outra margem do rio, alguns parecem até estar prontos para o transporte, porém, antes que fossem deslocados, o canteiro de obras foi abandonado. Outros blocos gigantes estão espalhados ao longo dos flancos da montanha onde se situa a pedreira até o Vilcanota, algumas dessas grandes pedras também se encontram na mesma margem do complexo arqueológico.
Essas pedras são conhecidas como “Pedras Cansadas” e, segundo algumas lendas, negaram-se a chegar ao seu destino final e para isso “choraram sangue”. Para alguns, esse mito representa uma metáfora, pois o “chorar sangue” das pedras seria, na realidade, um sinal que ali morreram trabalhadores, possivelmente esmagados debaixo do peso de algumas toneladas.
Na própria pedreira encontram-se algumas chullpas, as torres funerárias, que guardavam os restos de trabalhadores mortos ali mesmo. A localização das torres no próprio lugar de morte do operário seria, segundo Mestre Rumisoncco, porque mesmo depois de morto, o defunto continuaria a dar sua contribuição, não mais com seu esforço físico, mas através de proteção e auxílio do “outro” lado.
Isso indica que o princípio de relacionalidade estendia-se além da vida terrena, sendo possível estabelecer relações de reciprocidade entre vivos e mortos.
Tendo como obrigação cósmica “pagar” a reciprocidade (mita) ao imperador e ao Estado, muitos homens se auto-sacrificaram, fossem nos arriscados canteiros de obra ou nos não menos arriscados campos de batalha.
Mas o ato de auto-sacrifício pressupunha também um grande desapego da vida que pode ser explicado pela plena convicção de vida após a morte. Concepção presente nos preceitos religiosos da tradição andina.
A religiosidade e espiritualidade nos Andes são muito acentuadas, compondo um dos traços marcantes da cultura da região. Mesclada às antigas tradições, o catolicismo estabeleceu-se com grande força, impulsionado pela conquista militar e política.
Porém o catolicismo praticando pela gente dos Andes é muito diferente dos dogmas e preceitos da Igreja Romana, apresenta grandes traços de mestiçagem ou sincretismo.
Um desses pontos é a arraigada crença na reencarnação (ciclicidade), outro é a relacionalidade existente entre o “mundo” dos vivos e o dos mortos.
O próprio princípio de reciprocidade não terminava com a morte de uma pessoa, estendia-se mais além, havendo “deveres” estabelecidos por parte tanto dos vivos como dos mortos.
Assim, um familiar morto continua “fazendo favores” a seus entes queridos ou, dependendo do caso, molestando-lhes como um fantasma. A recordação cerimonial na tumba dos pais é um dever recíproco dos filhos. Às “contribuições” dos mortos, deve-se corresponder reciprocamente, mediante rituais, carinho, comida e despachos.
Em seu trabalho sobre a cosmovisão e essência da cultura andina, os pesquisadores bolivianos Manuel Alvarado Quispe – Satiri Waqaychayiri e Mari Mamani Tito – Nina Warawara apresentam curiosos relatos sobre as relações entre vivos e mortos.
Os pesquisadores descrevem um mito andino onde uma mulher visitou a tumba de seu esposo e começou a chorar, reclamando com o falecido sobre as desventuras e ausência dos filhos que haviam partido para a cidade grande.
Em seu desespero, a mulher questionava o marido morto:
- Foi ao menos visitar teus filhos? Preocupa-te porque não estão em casa? A ti nada importa?
Essa noite ao dormir, a mulher sonhou que seu marido chegava em casa, como fazia quando estava vivo, e começou a justificar-se para ela dizendo:
- Porque veio hoje reclamar de tantas coisas? Se eu sempre vou ver meus filhos; um está no quartel, por isso não vem em casa; a outra está na cidade, faz muito tempo que deixou de estudar e se dedica à bebida; eu falo com eles, porém eles não escutam; eu os visito, porém eles não me vêem. Ao te ver também eu vim, enquanto tiverem problemas, eu não posso estar tranqüilo como você diz.
A partir desse dia, a mulher passou a conversar com o espírito de seu esposo como se estivesse com ela, sempre a escutando.
No mundo andino as pessoas não morrem para sempre, seus espíritos estão sempre acompanhando os vivos. Recorre-se aos espíritos dos seres queridos, dialogando com eles, para que tudo vá bem no mundo dos vivos, para se ter um bom trabalho ou boa sorte, acredita-se que eles sempre ajudarão.
Algumas vezes, a ajuda dos espíritos de parentes e amigos mortos vem em forma de sonhos que orientam e advertem os vivos, inclusive para “puxar as orelhas”, caso isso seja necessário.
Desde a época dos incas que no período intermediário entre o equinócio de primavera, em setembro, e o solstício de verão, dezembro, há um mês dedicado aos mortos. Esse período, que curiosamente coincide com o dia de Todos os Santos, é chamado de Aya Marka (lugar dos mortos / ancestrais) e seu ponto máximo é o dia 04 de novembro, embora todo o mês (chamado de mês das almas) seja dedicado aos mortos.
Nesses dias “comemora-se” os entes queridos que já morreram, para eles são preparadas refeições (os pratos que mais gostavam em vida), bebe-se (às vezes muito), realizam-se verdadeiros piqueniques sobre suas tumbas. Conversa-se com os mortos e, ao serem soprados os aromas dos pratos preferidos sobre suas tumbas, os defuntos “chegam”, tendo sua “aparição” confirmada ou pressentida de muitas formas: ruídos, ventos ou algum animal faminto como aves, moscas ou abelhas.
Outro relato presente no trabalho de Manuel e Mari conta que, nas minas de Llallagua, um mineiro, que trabalhava justo nas celebrações da Festa de Todos os Santos, ficou soterrado no interior da mina. Passaram-se vários dias de busca até que, por não encontra-lo, abandonaram a tarefa de resgate e o deram por desaparecido e morto. Os parentes do mineiro prepararam a mesa para seu defunto, rezaram e o choraram, porém, passadas as celebrações, o homem voltou, são e salvo, à sua casa, depois de ter estado por 7 dias sob os escombros da mina.
O assombro de todos foi tal que passaram a chamar o mineiro de “o condenado”. Ele disse a seus parentes e amigos próximos que quando estava preso sob os escombros da mina, sobreviveu nos primeiros dias graças às folhas de coca que mascava. Nos últimos dias, agonizava sem mais nada para comer, até que, justo no dia de Todos os Santos, a comida apareceu como mágica dentro da mina: era a comida que prepararam, em seu altar fúnebre, seus familiares.
O mineiro também disse que só havia voltado para se despedir de sua família e sabia que iria morrer.
De fato, dois dias depois, morre o “condenado”, seus familiares, novamente e com ainda mais devoção, prepararam a mesa para o defunto e assim o fazem todos os anos.
Às vezes, as “faltas” em vida de uma pessoa acarretam conseqüências que devem ser eliminadas ou resolvidas ritualisticamente pelos vivos. Em função de seu grau de desequilíbrio à ordem cósmica causado, a ação de um morto ocasiona malefícios sobre sua família, sua comunidade e, até, em sua pátria (como na época do império pela pessoa do Inca e atualmente os governantes e dirigentes políticos).
É por isso que têm muita importância nos Andes, a misa de alma, onde uma misa é celebrada em memória do morto para restituir suas “falhas” ou lhe pedir “favores”. Pode-se conseguir o mesmo efeito consultando-se um sacerdote quechua ou aymara que realizará um ritual conforme as necessidades, muitas vezes determinado pela “leitura” das folhas de coca.
Inúmeras outras práticas cerimoniais relacionadas aos mortos, de origem pré-hispânica, são, ainda hoje, observadas nos países andinos. Um exemplo acontece na região central do Peru, onde o corpo de um defunto é velado duas vezes, uma no primeiro dia após a morte e, a segunda, cinco dias depois, como uma lembrança da divindade pré-inca Pariacaca, que têm cinco corpos pois nasceu de cinco ovos. Acredita-se que até o quinto dia, o morto pode ainda ressuscitar.
Sobre as reciprocidades acerca do imperador inca, outro impressionante relato deixado pelos espanhóis é que, quando da morte de um imperador, inúmeras pessoas, principalmente as mulheres “escolhidas”, as chamadas acllas ou “Virgens do Sol” (que dedicavam suas vidas ao culto e obrigações religiosas), suicidavam-se ao se atirar de precipícios. O motivo deste auto-sacrifício seria continuar a servir seu senhor na outra vida (seu dever/reciprocidade).
Da mesma forma, encontram-se vestígios e relatos de uma prática muito chocante para as concepções modernas: o sacrifício humano.
Apesar do conflito de informações acerca deste tema na cultura incaica, mesmo porque os relatos dos cronistas espanhóis e índios divergem sobre a existência ou não desta prática entre os incas, várias evidências revelam a realização de oferendas humanas às deidades tanto incas quanto pré-incas.
A descoberta de corpos humanos com claras evidências de terem sidos mortos em santuários e lugares sagrados antigos, assim como a iconografia representando cenas de sacrifício presente em cerâmicas, pedras e tecidos atestam a possibilidade de ocorrência no passado desta prática.
Encontram-se essas evidências em muitas das principais culturas que antecederam os incas: moches, nazcas, pukara, tiwanaku e outras.
Na época dos incas, as crônicas descrevem uma cerimônia chamada Capacocha, onde, após uma longa peregrinação até lugares sagrados (principalmente ao topo das altas montanhas – Apus), crianças eram sacrificadas para restituir a saúde debilitada do imperador ou para aplacar a ira dos deuses, manifesta em épocas de excessivas chuvas ou seca, granizada, erupções de vulcões e terremotos.
Para corroborar esses relatos, foram encontradas inúmeras “múmias” de crianças e pré-adolescentes no alto de grandes e importantes montanhas nevadas ao longo de toda a cordilheira dos Andes. O caso mais notório é o da “Niña Juanita”, encontrada no topo do Vulcão Ampato, próximo a Arequipa no Peru. Atualmente, o impressionante corpo desta menina inca, que deveria ter entre 12 ou 14 anos quando morreu, encontra-se no museu Santuários Andinos, sob custódia da Universidade Católica de Santa Maria em Arequipa.
Preservado pela temperatura e clima no topo nevado do vulcão, o corpo, adornos e demais oferendas deixados no lugar oferecem instigantes pistas sobre a prática do sacrifício humano entre os incas. Através do estudo desses vestígios e pelos relatos dos cronistas antigos, os cientistas buscam recriar os últimos passos de Juanita.
Ela deve ter passado por muitas cerimônias antes de sua morte, realizado uma extensa viagem de seu lugar de origem até Cuzco (a capital imperial), acompanhada de uma grande corte de pessoas importantes. Ela era esperada e foi recebida pelo próprio Inca, o qual transmitiu à menina sua aura divina, assumindo a responsabilidade de sua morte e do contato com as divindades da montanha.
De Cuzco, ela deveria partir em nova jornada até seu lugar de repouso, onde, após festas, rituais e um rigoroso jejum, ela foi morta, no topo da montanha, com um certeiro golpe de massa próximo ao olho direito. No momento de sua morte, Juanita vestia-se com o máximo de elegância e riqueza da época, possivelmente para afirmar sua natureza “divina” e real.
A violência do golpe mortal desferido contra a menina contrasta com o tratamento respeitoso e cerimonial que antecedeu o sacrifício. Isso revela que, antes de ser uma cruel e sádica prática dos antigos, o sacrifício era uma importante manifestação de cunho religioso dos incas onde, através do princípio de reciprocidade, buscava-se, com a máxima oferenda que podiam realizar – a vida humana, aplacar algum mal que ameaçava toda a comunidade ou o país, tanto diretamente como através da pessoa do imperador, o Inca.
Juanita, considerada o melhor corpo pré-hispânico conservado no mundo, foi oferecida aos Apus em torno de 1.466, durante o reinado do Inca Tupac Yupanqui. Nesta época, o Vulcão Sabancaya entrou em erupção e ameaçou destruir todas as plantações ao redor. Além de Juanita, também foram encontradas outras “múmias” de crianças, do mesmo período, tanto no nevado Ampato quanto no Hualca Hualca, ambos vizinhos ao Sabancaya.
Isso nos possibilita afirmar que a morte dessas crianças, dentro do princípio de reciprocidade, foi o preço pago pela vida de milhares de pessoas, tanto das que viviam próximas ao vulcão, quanto das que dependiam das colheitas das plantações ameaçadas.
Convertidas em chakanas, as crianças foram o elo entre o humano e o divino, a vida e a morte.
O que se percebe, portanto, é a relacionalidade entre vida e morte, onde o sacrifício de algumas pessoas garante a vida de muitas outras, uma lógica diferente da moderna e ocidental, porém, coerente com a antiga concepção pachasófica dos incas.
Assim, o sacrifício humano incaico justificar-se-ia por princípios radicalmente coletivistas, onde os interesses do grupo sobrepõem-se ao indivíduo. Para as pessoas nos Andes, a identidade e razão de ser de alguém são definidos pelo grupo ao qual pertence, é por isso que se diz que a célula nuclear das sociedades andinas foi e continua sendo a comunidade, o ayllu.
Essa “lógica” andina pode ser vista nos dias de hoje durante a festa do Tinku, uma celebração anual que se realiza no início do mês de maio, onde as populações de diversos povoados reúnem-se para rezar, beber, dançar e... lutar!
Importante e antiga tradição do altiplano boliviano, essa festividade choca aos espectadores modernos pela violência das brigas entre camponeses de diferentes povoados ou ayllus. De origem pré-colombiana, a festa acontece em uma importante data do calendário agrícola (após a colheita e antes do inverno) e, apesar da violência dos confrontos, é uma forma de prestar homenagem à Pachamama e, através do sincretismo, à cruz que cada comunidade rural guarda como protetora contra os desastres naturais, daí a festa também ser conhecida como Festa das Cruzes.
Paradoxalmente, as lutas entre os camponeses busca a paz, pois, é nas brigas, que acontecem uma vez por ano e sob regras e limites estabelecidos (os árbitros são mulheres solteiras), que se resolvem litígios e disputas de terras entre as comunidades. Nos meses que antecedem a festa ocorre a colheita e se há algum conflito nos limites da lavoura, as pessoas resolvem no Tinku.
Um elemento curioso do Tinku é que quanto mais agressivo e violento for o festival, mais sucesso terá. É fundamental que haja pelo menos um morto nos confrontos, pois seu sangue será oferenda para a Mãe Terra! Caso isso não aconteça, teme-se que ocorram desgraças como terremotos, secas ou tempestades.
Voltando aos antigos incas, outro elemento muito importante no sacrifício humano é que a pessoa que seria morta deveria se oferecer ou ser entregue (no caso dos pais) de livre vontade, um gesto espontâneo que deveria ser movido pelo altruísmo e por um dos principais valores pachasóficos, o amor – munay.
A expressão tukuy munaynioc, pode ser traduzida como “amor incondicional” e deve estar presente nas manifestações religiosas do ser humano andino, é um valor que se aproxima ao princípio cristão de “amor ao próximo”. No caso do sacrifício humano, expressa uma perspectiva radical, presente no cristianismo na ação do próprio Jesus que, segundo a tradição cristã, ofereceu sua vida para a salvação da humanidade. Curiosamente, o Cristo teve morte em uma cruz, justamente a representação simbólica da chakana!
Além do aspecto complementar de vida e morte no sacrifício humano, também encontramos nessa prática o princípio pachasófico de correspondência, já que as crianças que seriam mortas também realizavam uma conexão entre a dimensão humana e divina, elas eram consideradas divinizadas por seu ato e como tal, tratadas.
O princípio de correspondência apresenta-se, na análise sobre a morte, na interação entre os diferentes “mundos” ou dimensões, a ver: Hanan Pacha, Kay Pacha e Uju Pacha.
O exemplo da água ilustra a correlação existente entre “este mundo” e o “de cima”, assim como o “de baixo”, Kay, Hanan e Uju, respectivamente. Através da chuva e evaporação, o elemento água – Unu, realiza seu ciclo e transita continuamente entre os três mundos. Uma importante chakana que simboliza este processo é o arco-íris.
Semelhante processo ocorre com os seres humanos que, quando vivos, habitam o Kay Pacha. Após a morte, seu corpo, a matéria, vai para o Uju Pacha, enquanto seu espírito, liberto da matéria, irá para Hanan Pacha. Segundo a crença da reencarnação, muito forte na região andina, o espírito deverá voltar para o Kay Pacha em outro corpo – matéria, reiniciando o ciclo de complementaridade vida – morte - vida.
De acordo com os ensinamentos de Mestre Francisco Miranda – Rumisoncco, o símbolo do processo de renascimento humano, assim como no ciclo da água, é o arco-íris - K’uychi. Daí a grande importância dada a esta manifestação meteorológica tanto nos dias de hoje como na época dos incas, onde um dos santuários principais do Koricancha de Cuzco era reservado para esta deidade.
Os seres humanos do Kay Pacha, em sua posição intermediária, possuem uma enorme responsabilidade dentro dessa dinâmica, pois são eles, enquanto chakanas, que realizarão a interconexão entre os mundos, principalmente por meio de rituais e celebrações.
Essa concepção permite compreender a íntima relação que a Tradição Andina estabelece com os mortos. Na época dos incas havia a prática de mumificação dos reis, rainhas e principais sacerdotes e guerreiros.
Muitos estudiosos julgaram ver nessa prática uma espécie de culto aos ancestrais, isso não é de todo falso, porém sua abrangência vai mais além.
Chamadas de mallquis (que também significa árvore), as múmias dos ancestrais eram mantidas, por sofisticadas técnicas de conservação, como se estivessem vivas e, para a crença incaica, elas estavam de fato, só que em outro mundo ou dimensão.
Representantes de linhagens ou dinastias reais, as múmias eram vestidas, alimentadas, bebiam, compareciam em rituais e festividades, possuindo uma ativa “vida” social e até política.
O nome de mallquis – árvores para estas múmias é bastante significativo e expressa, assim como os galhos de um mesmo tronco, a filiação ou linhagem – panaca de um grupo a um ancestral comum. Esse ancestral, por sua vez, seria representado pelas raízes. Da base da árvore, sob a terra (Uju Pacha), os ancestrais enviam o espírito para as crianças da família que irão nascer e completar um novo ciclo ao crescer e multiplicar. Como os frutos da árvore, esses novos membros da panaca deixarão sementes que, ao cair na terra, possibilitarão o reinicio do ciclo.
A relação entre os membros de uma mesma panaca e seu ancestral manifestava-se na forma como eram tratadas as múmias, que, em reciprocidade, zelaria e ajudaria seus descendentes.
Estes, por sua vez, além dos devidos cuidados com a múmia, deveriam honrar, através de suas ações, os antepassados. Qualquer infração ou descuido nesta relação traria o desequilíbrio que acarretaria males que só poderiam ser sanados através de uma “restituição” simbólica.
Isso não quer dizer que o espírito ou alma do morto ficasse preso ao seu corpo. O devido lugar do espírito era o mundo superior – Hanan, porém seu corpo - matéria foi um dia morada desse espírito e, como tal, mantinha um vinculo através do princípio de correspondência, que determinava a ordem entre o “de cima” e o “de baixo”.
Segundo Mestre Rumisoncco, o corpo de pessoas ilustres e importantes, grandes guerreiros e sacerdotes, possuíam muita energia que, uma vez livre o espírito, poderia ser aproveitado para benefício dos vivos.
Essas múmias colocadas em santuários e lugares de poder, as Huacas, interagiam energeticamente com os vivos, tanto os seres humanos quanto as outras formas de vida, inclusive as plantas.
É por isso que havia nos santuários e templos próximos às plantações, nichos reservados para as múmias dos ancestrais que, em troca do carinho e oferenda dos vivos, beneficiariam saudáveis cultivos e fartas colheitas.
Ainda hoje, os camponeses andinos invocam, além das deidades antigas, seus ancestrais, para livrar as plantações de granizadas, pragas de insetos, chuvas excessivas e secas. Algumas comunidades possuem guardadas em santuários secretos, principalmente dentro de cavernas (chakanas para o Uju Pacha), as múmias de seus ancestrais.
Durante os tempos antigos, nas guerras que ocorriam entre os diferentes povos e nações, muitas vezes vencia a disputa o grupo que lograsse “capturar” a múmia (até nos campos de batalha elas compareciam) de seu oponente.
Em certas datas festivas, as múmias reais eram luxuosamente vestidas e transportadas, em liteiras, nos ombros dos principais membros da panaca, em procisões que percorriam as ruas da capital imperial. Com a conquista espanhola e posterior queima das múmias dos imperadores, seu posto foi ocupado pelas imagens dos santos católicos que saem de dentro da Catedral de Cuzco e são transportados, da mesma forma, pelos fiéis, isso acontece durante as celebrações do calendário litúrgico, com destaque para a semana santa e festa de Corpus Christi.
Nas cidades maiores, onde as relações familiares e comunitárias cederam lugar a outras formas mais individualizadas, no lugar dos ancestrais, muitas pessoas “utilizam” como intermediários entre os “mundos” aos santos católicos.
Mas em pequenos povoados, comunidades agrárias e ayllus, em essência, pouca coisa mudou em quinhentos anos. Nesses lugares os ancestrais continuam como importantes chakanas e convivem, muitas vezes com mais prestígio, ao lado dos santos da Igreja. Na forma aparente pratica-se o catolicismo, inclusive quando perguntadas sobre sua religião, as pessoas destes lugares respondem que são católicas, mas não realizam nenhuma tarefa agrícola, nem edificam uma construção qualquer, sem a oferenda à Pachamama e aos espíritos ancestrais.

4. Conclusão
Através desta análise da morte na Tradição Andina percebe-se que, apesar de alguns séculos de domínio e influência cultural e religiosa, a concepção e relação do ser humano andino com a morte permaneceu, na sua essência, assim como outros elementos culturais, semelhante aos tempos incaicos.
A morte para o ser humano andino é um elemento a mais dentro da extensa cadeia de relações que são estabelecidas seguindo os princípios enunciados pela Pachasofia.
Segundo esses princípios, tudo está relacionado com tudo. A relacionalidade, por sua vez, manifesta-se nos princípios secundários de correspondência, complementaridade e reciprocidade.
A morte, enquanto concepção cultural, revela-se na complementaridade entre vida e morte; perpassa os três “mundos” através da correspondência; e encontra, no princípio de reciprocidade, suas regras comportamentais e fundamentos éticos.
Por meio destes princípios, todos corroborados pelo próprio funcionamento da natureza, o ser humano andino desenvolveu uma relação mais “natural” com a morte.
A acentuada espiritualidade e religiosidade da gente nos Andes garantem os pressupostos filosóficos e contribuem para essa visão “natural” da morte.
Pelo princípio de complementaridade e através da visão cíclica do tempo e de todas as coisas no universo, o ser humano andino chegou à conclusão que toda vida inicia seu ciclo através do nascimento e o encerra pela morte para, então, reiniciá-lo por meio de um novo nascimento. Assim germinam as sementes, assim caem as chuvas e assim nascem e morrem os homens e mulheres, para lembrar-nos de tudo isso, além de nos emocionar com sua beleza, manifesta-se no céu o arco-íris, o sagrado K’uychi, símbolo da esperança de que a partir de toda morte sempre nasça a vida.

5. Referências Bibliográficas:
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· _______Revista Terra. Editora Peixes, São Paulo, nº 8, Ano 11, agosto de 2003

Entrevista com Ka W. Ribas em 2006


Expedição pelos Andes
ANA ELIZABETH DINIZ/ ESPECIAL PARA O TEMPO

Onze brasileiros participaram durante um mês, de 6 de agosto e 6 de setembro, da Expedição Conexão Adventure, um mergulho na espiritualidade andina e um contato intenso com a sabedoria ancestral dos descendentes dos “Filhos do Sol”, como eram chamados os incas.
Na coordenação cultural da expedição, Ka W. Ribas, ou Amauta Runa, 36, nome inca que significa mestre de homens. Ele é historiador, geobiólogo e estudioso de tradições e culturas ameríndias. Essa não foi a primeira visita do especialista em história da América Latina aos Andes. Mas, com certeza, foi a mais impactante.
“Minha última viagem para lá tinha sido em 2001. Fiquei maravilhado com o que vi, o ressurgimento da tradição andina. Foi impressionante. Isso coincide com o momento Pachakuti, (pacha, tempo e espaço e Kuti, mudança), a revolução planetária que segundo a tradição andina acontece a cada 500 anos. Seu término está previsto para 2012, o ano estipulado pelo Calendário Maia para que a humanidade dê um salto consciencial. Trata-se do último katun, período de 20 anos de acertos e sincronização galáctica”, prevê Ka.
Em entrevista a O TEMPO, o historiador conta suas impressões, descobertas e sentimentos registrados em um mês de aventuras por 12 mil quilômetros de história.


O TEMPO - Quem foram os incas?

Ka W. Ribas - A palavra inca significa “Filhos do Sol”. O Império Inca (Tawantinsuyu no dialeto Quechua) foi um estado-nação que existiu na América do Sul de 1200 até a invasão dos conquistadores espanhóis e a execução do imperador Atahualpa em 1533.
O império incluía regiões desde o extremo norte como o Equador e o sul da Colômbia, todo o Peru e a Bolívia, até o noroeste da Argentina e o norte do Chile. A capital do império era a atual cidade de Cuzco (em Quechua, “Umbigo do Mundo”).
O império abrangia diversas nações e mais de 700 idiomas diferentes sendo o mais falado o Quechua.
Essa civilização da Cordilheira dos Andes era muito avançada em planejamento urbano, arquitetura, filosofia, organização estatal, economia, técnicas agrícolas e conseguiram, através da ética ecológica, erradicar a fome de 10 milhões de pessoas que viviam no Estado inca de Tawantinsuyu (os quatro cantos do mundo).


De onde eles tiraram as informações sobre técnicas agrícolas?

Os incas eram um povo simples e sábio. Através do “conheça-te a ti mesmo”, eles copiaram o funcionamento do corpo humano para criar processos de bombeamento e abastecimento de água. A observação do fluxo do sangue no corpo foi o modelo imitado nos sistemas de irrigação. Eles tinham uma relação harmoniosa com a natureza. Construíram verdadeiros terraços agrícolas nas encostas dos morros. Isso impedia a erosão ao mesmo tempo que criava microclimas destinados a acolher culturas diferenciadas.


Existe algum estudo que determine a idade precisa dessa civilização?

As ruínas de Caral, no Peru, colocam a civilização andina com a mesma data da civilização mesopotâmica.
O homem interagia com o meio ambiente de forma respeitosa e sagrada mesmo porque, para sobreviver, era obrigado a conviver com as altas altitudes, terremotos, o clima inóspito do deserto de Atacama.
Eles mantinham uma íntima e simbiótica relação com as forças do céu e da Terra.


Qual era a religião dos incas?

Sua religião era a própria natureza. Eles acreditavam em três mundos ou dimensões: o céu ou mundo superior, o Hanan Pacha; este mundo, Kay Pacha e os inframundos ou mundos inferiores, os Uju Pacha.
Uma metáfora explica bem essa relação. A água ou unu, no dialeto Quechua, vem do céu, Hanan Pacha, cai no Uju Pacha e, nas nascentes, aflora no Kay Pacha. Daí, através da evaporação, ela sobe e retorna para Hanan Pacha.
A mesma coisa acontece com as sementes e com o ser humano que vive no Kay Pacha, quando morre seu corpo vai para o Uju Pacha e seu espírito para Hanan Pacha.
O símbolo andino da reencarnação é o arco-íris, fenômeno que une o Hanan Pacha com o Uju Pacha. Esse símbolo está na bandeira da cidade de Cuzco, no Peru.


Qual era a cosmovisão andina?

A tradição andina é dual. Segundo eles, a humanidade vive no Kay Pacha para trabalhar dentro de si essa dualidade.
O homem como um ser ereto tem a cabeça no céu e os pés na Terra. A coluna vertebral é responsável pela ligação entre as duas realidades.


Qual o simbolismo dos totens?

Cada um dos três mundos está relacionado a um animal: Uju Pacha está simbolizado pela serpente que representa a sabedoria e a energia kundalini. Que pode levar o homem à iluminação. É a serpente emplumada.
Fala-se que dentro da Terra existe uma gigantesca serpente que quando se movimenta provoca os abalos sísmicos. Kay Pacha é simbolizado pelo puma, felino que sinaliza a astúcia, inteligência, estratégia para se viver nesse mundo.
E Hanan Pacha é o condor, a espiritualidade que faz a interligação entre homens e deuses. Ele voa alto, próximo ao Sol, símbolo da iluminação. O condor é necessário para devorar as carniças que simbolizam as fraquezas humanas, suas fragilidades.
Diz-se que a sabedoria da serpente, a estratégia ou espreita do puma e a espiritualidade do condor levam a um vôo até os céus.


Como era o ritual fúnebre desse povo?

Eles mumificavam seus soberanos e guerreiros. Mas todos, sem exceção, eram enterrados dentro de potes de barro, em posição fetal e virados para o nascente, o leste. Depois da morte, eles retornam a Terra, à Uju Pacha para algum dia nascer de novo.


Qual a relação da sabedoria andina com o taoísmo?

O tao é o uno e trabalha com o princípio da dualidade, o yin e o yang. Para os incas o tao é chulla, único, Hanan é yang e Urin o yin.


Qual a sua percepção sobre o uso da folha de coca?

A coca para o povo andino é um medicamento e alimento. Dela se faz a farinha que produz bolos, pães e biscoitos. É sagrada, tanto que é chamada de mama coca.
Ela cura alguns tipos de câncer, dizem os andinos. Existe uma campanha que diz: “A cocaína é branca e mata. A coca é verde e dá a vida”. Ela tira a dor de cabeça, evita o mal de altitude, é usada como oráculo, em cerimônias e rituais.


Como os incas se relacionavam com o tempo e o espaço?

Muitas edificações arqueológicas précolombianas, tanto dos incas quanto préincaicas, encontram-se alinhadas astronomicamente e demarcam os solstícios, equinócios e outras importantes datas do calendário agrícola-religioso andino. Esse é o objeto de estudo da ciência chamada arqueoastronomia.
A localização espacial desses complexos arqueológicos chama a atenção por sua intensidade e qualidade energética (comprovada através de medições radiestésicas realizadas recentemente em importantes sítios pré-colombianos do Peru, Bolívia e Chile), além da beleza natural desses lugares que o homem andino soube respeitar com uma arquitetura que se integra e harmoniza-se com o entorno.
Na língua Quechua, a palavra Pacha pode significar tanto tempo quanto espaço. Através dos rituais mágico- religiosos realizados em datas especiais, esses sábios buscavam utilizar esse conhecimento aplicando e potencializando determinados padrões energéticos benéficos ao desenvolvimento da vida.
Isso se refletia no vigor e saúde das plantações e das pessoas ao redor dos lugares de poder. Ainda hoje, o milho que cresce na região do Vale Sagrado dos incas, próximo a Cuzco no Peru, é único por seu tamanho, diversidade, qualidade e sabor.
O sucesso agrícola incaico, associado às reações emocionais e internas do ser humano ainda hoje perceptíveis, atestam a eficácia do trabalho geobiológico realizado através do que podemos chamar de uma ciência sagrada.


Como era a relação com o Sol?

Por sua importância nos processos vitais do planeta, o Sol se destacava na astronomia e cosmovisão andina, ocupando papel de destaque.
Civilizações anteriores aos incas já reverenciavam o astro-rei e praticavam esse saber de caráter sagrado, com destaque para a civilização Tiwanacota que, por volta de 200 a.C. começou a se desenvolver no altiplano boliviano, próximo ao lago Titicaca, expandindo sua influência cultural por uma extensa área da cordilheira até o litoral.
Artefatos arqueológicos e ruínas comprovam essa influência por uma extensa faixa de terras só superada pela dimensão do império inca.
Apesar dos séculos de depredação, ainda está de pé o gigantesco complexo de templos conhecido como Tiwanaco (o vilarejo ao lado das ruínas foi quase que inteiramente construído com pedras da antiga cidade).


Qual a importância de Tiwanaco?

Foi na região do lago Titicaca ou em uma de suas ilhas que alguns mitos incas relatam que surgiram ou chegaram os filhos do Sol, um casal lendário, Manco Capac e Mama Ocllo, fundadores da dinastia e do povo inca.
Dali eles partiram em uma peregrinação sagrada até fundarem uma capital - Cuzco e um império que iria propagar o culto solar.


Jornal O Tempo, Terça-feira, 31 de Outubro de 2006.