quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Entrevista com Ka W. Ribas em 2006


Expedição pelos Andes
ANA ELIZABETH DINIZ/ ESPECIAL PARA O TEMPO

Onze brasileiros participaram durante um mês, de 6 de agosto e 6 de setembro, da Expedição Conexão Adventure, um mergulho na espiritualidade andina e um contato intenso com a sabedoria ancestral dos descendentes dos “Filhos do Sol”, como eram chamados os incas.
Na coordenação cultural da expedição, Ka W. Ribas, ou Amauta Runa, 36, nome inca que significa mestre de homens. Ele é historiador, geobiólogo e estudioso de tradições e culturas ameríndias. Essa não foi a primeira visita do especialista em história da América Latina aos Andes. Mas, com certeza, foi a mais impactante.
“Minha última viagem para lá tinha sido em 2001. Fiquei maravilhado com o que vi, o ressurgimento da tradição andina. Foi impressionante. Isso coincide com o momento Pachakuti, (pacha, tempo e espaço e Kuti, mudança), a revolução planetária que segundo a tradição andina acontece a cada 500 anos. Seu término está previsto para 2012, o ano estipulado pelo Calendário Maia para que a humanidade dê um salto consciencial. Trata-se do último katun, período de 20 anos de acertos e sincronização galáctica”, prevê Ka.
Em entrevista a O TEMPO, o historiador conta suas impressões, descobertas e sentimentos registrados em um mês de aventuras por 12 mil quilômetros de história.


O TEMPO - Quem foram os incas?

Ka W. Ribas - A palavra inca significa “Filhos do Sol”. O Império Inca (Tawantinsuyu no dialeto Quechua) foi um estado-nação que existiu na América do Sul de 1200 até a invasão dos conquistadores espanhóis e a execução do imperador Atahualpa em 1533.
O império incluía regiões desde o extremo norte como o Equador e o sul da Colômbia, todo o Peru e a Bolívia, até o noroeste da Argentina e o norte do Chile. A capital do império era a atual cidade de Cuzco (em Quechua, “Umbigo do Mundo”).
O império abrangia diversas nações e mais de 700 idiomas diferentes sendo o mais falado o Quechua.
Essa civilização da Cordilheira dos Andes era muito avançada em planejamento urbano, arquitetura, filosofia, organização estatal, economia, técnicas agrícolas e conseguiram, através da ética ecológica, erradicar a fome de 10 milhões de pessoas que viviam no Estado inca de Tawantinsuyu (os quatro cantos do mundo).


De onde eles tiraram as informações sobre técnicas agrícolas?

Os incas eram um povo simples e sábio. Através do “conheça-te a ti mesmo”, eles copiaram o funcionamento do corpo humano para criar processos de bombeamento e abastecimento de água. A observação do fluxo do sangue no corpo foi o modelo imitado nos sistemas de irrigação. Eles tinham uma relação harmoniosa com a natureza. Construíram verdadeiros terraços agrícolas nas encostas dos morros. Isso impedia a erosão ao mesmo tempo que criava microclimas destinados a acolher culturas diferenciadas.


Existe algum estudo que determine a idade precisa dessa civilização?

As ruínas de Caral, no Peru, colocam a civilização andina com a mesma data da civilização mesopotâmica.
O homem interagia com o meio ambiente de forma respeitosa e sagrada mesmo porque, para sobreviver, era obrigado a conviver com as altas altitudes, terremotos, o clima inóspito do deserto de Atacama.
Eles mantinham uma íntima e simbiótica relação com as forças do céu e da Terra.


Qual era a religião dos incas?

Sua religião era a própria natureza. Eles acreditavam em três mundos ou dimensões: o céu ou mundo superior, o Hanan Pacha; este mundo, Kay Pacha e os inframundos ou mundos inferiores, os Uju Pacha.
Uma metáfora explica bem essa relação. A água ou unu, no dialeto Quechua, vem do céu, Hanan Pacha, cai no Uju Pacha e, nas nascentes, aflora no Kay Pacha. Daí, através da evaporação, ela sobe e retorna para Hanan Pacha.
A mesma coisa acontece com as sementes e com o ser humano que vive no Kay Pacha, quando morre seu corpo vai para o Uju Pacha e seu espírito para Hanan Pacha.
O símbolo andino da reencarnação é o arco-íris, fenômeno que une o Hanan Pacha com o Uju Pacha. Esse símbolo está na bandeira da cidade de Cuzco, no Peru.


Qual era a cosmovisão andina?

A tradição andina é dual. Segundo eles, a humanidade vive no Kay Pacha para trabalhar dentro de si essa dualidade.
O homem como um ser ereto tem a cabeça no céu e os pés na Terra. A coluna vertebral é responsável pela ligação entre as duas realidades.


Qual o simbolismo dos totens?

Cada um dos três mundos está relacionado a um animal: Uju Pacha está simbolizado pela serpente que representa a sabedoria e a energia kundalini. Que pode levar o homem à iluminação. É a serpente emplumada.
Fala-se que dentro da Terra existe uma gigantesca serpente que quando se movimenta provoca os abalos sísmicos. Kay Pacha é simbolizado pelo puma, felino que sinaliza a astúcia, inteligência, estratégia para se viver nesse mundo.
E Hanan Pacha é o condor, a espiritualidade que faz a interligação entre homens e deuses. Ele voa alto, próximo ao Sol, símbolo da iluminação. O condor é necessário para devorar as carniças que simbolizam as fraquezas humanas, suas fragilidades.
Diz-se que a sabedoria da serpente, a estratégia ou espreita do puma e a espiritualidade do condor levam a um vôo até os céus.


Como era o ritual fúnebre desse povo?

Eles mumificavam seus soberanos e guerreiros. Mas todos, sem exceção, eram enterrados dentro de potes de barro, em posição fetal e virados para o nascente, o leste. Depois da morte, eles retornam a Terra, à Uju Pacha para algum dia nascer de novo.


Qual a relação da sabedoria andina com o taoísmo?

O tao é o uno e trabalha com o princípio da dualidade, o yin e o yang. Para os incas o tao é chulla, único, Hanan é yang e Urin o yin.


Qual a sua percepção sobre o uso da folha de coca?

A coca para o povo andino é um medicamento e alimento. Dela se faz a farinha que produz bolos, pães e biscoitos. É sagrada, tanto que é chamada de mama coca.
Ela cura alguns tipos de câncer, dizem os andinos. Existe uma campanha que diz: “A cocaína é branca e mata. A coca é verde e dá a vida”. Ela tira a dor de cabeça, evita o mal de altitude, é usada como oráculo, em cerimônias e rituais.


Como os incas se relacionavam com o tempo e o espaço?

Muitas edificações arqueológicas précolombianas, tanto dos incas quanto préincaicas, encontram-se alinhadas astronomicamente e demarcam os solstícios, equinócios e outras importantes datas do calendário agrícola-religioso andino. Esse é o objeto de estudo da ciência chamada arqueoastronomia.
A localização espacial desses complexos arqueológicos chama a atenção por sua intensidade e qualidade energética (comprovada através de medições radiestésicas realizadas recentemente em importantes sítios pré-colombianos do Peru, Bolívia e Chile), além da beleza natural desses lugares que o homem andino soube respeitar com uma arquitetura que se integra e harmoniza-se com o entorno.
Na língua Quechua, a palavra Pacha pode significar tanto tempo quanto espaço. Através dos rituais mágico- religiosos realizados em datas especiais, esses sábios buscavam utilizar esse conhecimento aplicando e potencializando determinados padrões energéticos benéficos ao desenvolvimento da vida.
Isso se refletia no vigor e saúde das plantações e das pessoas ao redor dos lugares de poder. Ainda hoje, o milho que cresce na região do Vale Sagrado dos incas, próximo a Cuzco no Peru, é único por seu tamanho, diversidade, qualidade e sabor.
O sucesso agrícola incaico, associado às reações emocionais e internas do ser humano ainda hoje perceptíveis, atestam a eficácia do trabalho geobiológico realizado através do que podemos chamar de uma ciência sagrada.


Como era a relação com o Sol?

Por sua importância nos processos vitais do planeta, o Sol se destacava na astronomia e cosmovisão andina, ocupando papel de destaque.
Civilizações anteriores aos incas já reverenciavam o astro-rei e praticavam esse saber de caráter sagrado, com destaque para a civilização Tiwanacota que, por volta de 200 a.C. começou a se desenvolver no altiplano boliviano, próximo ao lago Titicaca, expandindo sua influência cultural por uma extensa área da cordilheira até o litoral.
Artefatos arqueológicos e ruínas comprovam essa influência por uma extensa faixa de terras só superada pela dimensão do império inca.
Apesar dos séculos de depredação, ainda está de pé o gigantesco complexo de templos conhecido como Tiwanaco (o vilarejo ao lado das ruínas foi quase que inteiramente construído com pedras da antiga cidade).


Qual a importância de Tiwanaco?

Foi na região do lago Titicaca ou em uma de suas ilhas que alguns mitos incas relatam que surgiram ou chegaram os filhos do Sol, um casal lendário, Manco Capac e Mama Ocllo, fundadores da dinastia e do povo inca.
Dali eles partiram em uma peregrinação sagrada até fundarem uma capital - Cuzco e um império que iria propagar o culto solar.


Jornal O Tempo, Terça-feira, 31 de Outubro de 2006.

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