sexta-feira, 16 de maio de 2008


Introdução de "A Ciência Sagrada dos Incas", páginas 17 a 22:
“Nós, os índios, em especial dos Andes e em geral da América, somos uma alternativa de vida por causa de nosso respeito ao equilíbrio dinâmico e frente ao eminente perigo que nos cerca, o perigo que a humanidade ainda não conheceu”.
Manifesto do Movimento indígena Tupac Katari.



Muito temos a aprender com o conhecimento ancestral dos antigos americanos e sua cultura, ainda viva e vigorosa em muitos lugares e países de todo o continente. Em alguns locais, a herança indígena se diluiu ou misturou-se de tal forma com outras culturas que se apresenta quase que imperceptível. Já em outras regiões, a tradição nativa permaneceu bastante forte e palpável, como no caso da extensa região da cordilheira dos Andes.
Dentre esses ensinamentos encontra-se o profundo respeito e reverência com que esses povos tratavam a todas as manifestações e formas de vida. Os antigos enxergavam na natureza o sagrado e dessa forma estruturaram e organizaram seu universo. Eles estabeleceram uma ética ecológica que a civilização industrial moderna parece desconhecer quando agride e despreza a mãe-Terra. Recuperar das culturas ancestrais essa ética e valores seriam de grande benefício para todos nós e para o planeta.
Todos os elementos do mundo indígena se reconhecem e se baseiam nestes valores e princípios, encontrando-se interligados mediante uma visão holística que privilegia a unicidade, a interdependência e a interdisciplinidade.
Este trabalho apresenta uma cultura ameríndia (a milenar tradição andina, através de sua última e grandiosa civilização anterior à chegada dos europeus, a dos Incas) que estruturou seu universo e desenvolveu-se, desde o aspecto material, passando por suas instituições e até suas manifestações religiosas, sempre mantendo o vínculo com a natureza e a ética ecológica.
Ao desenvolver um modelo de civilização onde o controle de técnicas agrícolas era associado a conhecimentos astronômicos e ao respeito pela natureza, Pachamama, a genialidade do homem andino, expressa através de uma ciência de caráter sagrado, possibilitou o surgimento do império inca, chamado de Tawantinsuyo (quatro cantos do mundo) que entre outros méritos, consta o de ter erradicado a fome dentro dos limites de seu vasto território, composto de áreas dos atuais Peru, Bolívia, Equador, Colômbia, Chile e Argentina.
Porém, por mais organizado e forte que fosse o império dos Incas, em 1532, após uma guerra civil e fratricida, o Tawantinsuyo era invadido por um pequeno exército de intrépidos e violentos conquistadores espanhóis. Liderados por Francisco Pizarro, os espanhóis em pouco tempo conquistaram e desarticularam esse extenso império.
O império caiu, os Incas não mais eram senhores dos quatro cantos, mas o povo resistiu e ainda hoje sobrevive, assim como sua cultura, sabedoria e tradição.
Atualmente, milhares de pessoas em países como o Peru, a Bolívia ou o Equador ainda mantêm muitas das tradições de seus antepassados. Sejam pessoas que vivam em grandes cidades como La Paz e Quito ou em vilarejos e comunidades encravados nas escondidas alturas da cordilheira. O quéchua e o aymará são línguas indígenas quase tão faladas quanto o espanhol nestes países.
Muitos povos compunham o Tawantinsuyo, nações inteiras foram incorporadas ao império. Mas ao mesmo tempo em que expandiam seu Estado, os Incas ampliavam sua sabedoria, assimilando a cultura e o conhecimento destes outros povos.
O que motivava o processo expansionista incaico e suas conquistas não era a rapina ou a imposição de um credo, o que inspirava os Incas era construir um grande Estado que tinha como objetivo beneficiar toda a população, principalmente no que diz respeito ao sustento.
Para isso, não fizeram mais que utilizar antiqüíssimos padrões e técnicas, aplicando-os em um âmbito geográfico considerável. O império dispunha para seu uso e distribuição de uma enorme variedade e quantidade de produtos: desde a costa do pacífico, passando pela cordilheira, até os Andes Amazônicos.
Quanto à força de trabalho, o governo inca podia empregar massiva mão de obra para realizar grandes obras como construir canais de irrigação, estradas, templos e o palácio dos imperadores, além do trabalho nas terras de cultivo. O trabalho era uma forma de tributo pago pelos benefícios do Estado, uma troca que se encaixa no modelo de reciprocidade que caracteriza a economia andina.
Esse sistema é coerente com os valores que ainda são utilizados para organizar as relações econômicas entre as pessoas, principalmente entre as comunidades indígenas, na região da cordilheira dos Andes.
Os Incas fomentaram e puseram em prática uma infinidade de recursos agrícolas para intensificar a produção de alimentos e assim fazer frente à crescente demanda, desmedida em função da limitação de terras cultiváveis em contraste com a extensão territorial do império.
Precisamente a natureza, exígua em matéria de terras de cultivo, gerou uma crise alimentícia permanente que somada ao aumento populacional levou ao desenvolvimento cultural dos povos andinos e explicam sua fisionomia tanto material como institucional. Assim moldaram sua forma de administração e organizaram seu universo mágico-religioso, onde suas divindades principais eram deuses ligados ao sustento.
Deuses que muitas vezes assumiam um caráter sombrio, quando pediam sacrifícios de sangue humano aos seus seguidores, seja para mandar as chuvas ou garantir uma boa colheita.
Garcilaso de La Vega – cronista do século XVI, filho de um conquistador espanhol com uma nobre Inca, considerado uma das melhores fontes para se conhecer a história desse povo – afirma que os senhores do Tawantinsuyo não praticavam o sacrifício humano, pelo contrário, era uma das restrições impostas às nações e povos quando de sua incorporação ao império.
Porém a arqueologia e outras fontes históricas apontam o contrário, principalmente pelas evidências de um ritual conhecido como capacocha, onde crianças eram sacrificadas e entregues como oferendas no cume de montanhas.
A prática do sacrifício humano nas civilizações ameríndias, tanto na América do Sul quanto na mesoamérica (região dos Maias e Astecas), é um assunto que choca a muitas pessoas, até mesmo sendo tratado como um tabu.
Creio que o assassinato de uma pessoa, seja por qualquer motivo, é uma barbaridade. Só que temos valores e vivemos em um contexto diferente dos homens e mulheres que viveram naquelas sociedades há quinhentos, mil, dois mil anos atrás.
Aguardar com expectativa os sinais do céu e dos deuses, que não ocorrerá uma tragédia, ou pelo contrário, que as chuvas serão abundantes e a colheita farta, era um fato que se repetia anualmente, assim como se repetiam as estações.
Se os augúrios não fossem favoráveis ou a chuva tardasse a cair, o medo da fome e da tragédia iminente ameaçava toda a comunidade. Neste contexto é que entra a idéia do sacrifício humano: muitas vezes, após tentativas de sacrifícios de animais e outras oferendas que não trouxeram o benefício dos deuses, somente o sacrifício maior da vida humana poderia resolver o problema.
Dentro de uma lógica coletivista, a morte de um indivíduo proporcionaria a vida para toda a população, uma lógica encontrada também no cristianismo quando Jesus doa sua vida pela salvação da humanidade. O sacrifício de um para o bem de todos. Uma pessoa entregando sua vida pela a de sua comunidade, inspirada por um princípio paralelo ao ensinamento do amor ao próximo que os Incas chamaram de tukuy munaynioc – amor puro ou incondicional.
Muitas vezes, o indivíduo a ser sacrificado era tratado com enorme reverência e respeito, até mesmo como se fosse um próprio deus. Para os Astecas no México, um guerreiro de honra e valor deveria morrer em um campo de batalhas ou no altar de sacrifícios.
Portanto a questão do sacrifício humano deve ser tratada dentro da lógica dos homens daquele tempo e daquelas sociedades. De maneira alguma essa prática deve anular ou desvalorizar seus méritos e seus valores. Não busco valorizar ou justificar o sacrifício humano, nem nego que ocorreram ou que foram muitas vezes violentos, apenas busco analisa-lo dentro de seu contexto cultural.
Se os Incas praticaram ou não o sacrifício humano uma coisa é certa: somente o sangue dos sacrifícios e a benevolência dos deuses não seriam suficientes para abastecer a população; para isso, trabalho e técnicas seriam essenciais.
Para obter o máximo da produção agrícola, fundamental foi conhecer os delicados ciclos da natureza andina, identificar as estações e estabelecer um preciso calendário relacionado à agricultura, observando as estrelas, o Sol e a Lua.
E nesse campo, os astrônomos andinos aprofundaram bastante seu conhecimento compondo, junto à arquitetura, impressionantes espaços rituais, cujas construções estavam alinhadas astronomicamente e marcavam solstícios e equinócios.
Através da arqueoastronomia (o estudo dos vestígios arqueológicos e sua relação com a astronomia) podemos perceber o alcance deste conhecimento, sua relação com a cultura, a religião e sua importância na manutenção de um gigantesco império agrícola.
Também com finalidade de ampliar e melhorar a produção agrícola, mas indo além disso, os Incas praticaram a geobiologia, arte milenar de trabalhar as energias do céu e da terra, encontrada praticamente em todas as civilizações antigas: chineses, egípcios, hebreus, gregos, romanos, árabes e celtas, todos a conheciam com diferentes nomes e nuances culturais.
Quando os celtas colocavam grandes blocos de pedra lapidada, os meníres, em determinados locais de forte energia cosmo-telúrica, eles buscavam potencializar essa energia e espalha-la, afetando beneficamente as plantações ao redor.
Essa mesma tradição é encontrada nos Mestres de Obras dos templos românicos e góticos da idade média que consideravam as energias do céu e da terra e trabalhavam proporções geométricas, orientação cardeal e outras técnicas para conseguir um efeito específico no âmbito energético que se traduz em sensação de paz e harmonia.
Da mesma forma, oferendas e rituais realizadas nos lugares de poder, chamados de Huacas pelos Incas, principalmente em determinadas datas especiais, afetariam o padrão energético das plantações ao redor, além de causar outros efeitos aos seres vivos, inclusive ao homem.
É por isso que tanto se diz que em Machu Picchu a pessoa é envolta em uma agradável sensação de paz e reconforto. Machu Picchu e muitas outras obras do povo andino foram planejadas para interagir com as energias do céu e da terra. Muitas construções estão alinhadas com os astros, poderes do céu, e localizadas em lugares especiais da Terra, seguem padrões harmônicos, produzindo, ainda hoje, efeitos notáveis.

O objetivo desta obra é realizar um estudo da civilização incaica através de seus mitos e seu desenvolvimento científico, astronômico, geobiológico, artístico, filosófico, político, ecológico e social, conjugado à sua visão mágico-religiosa do universo. Trata-se de uma sabedoria e prática ainda hoje presentes na tradição andina. Um sofisticado e abrangente conjunto de conhecimentos que se inter-relacionam para compor um sistema orgânico e coerente ao qual chamaremos de ciência sagrada.