Recordo-me que, há alguns
anos atrás, conversava com um amigo, que já naquela época conduzia cerimônias
ancestrais, sobre o termo “xamanismo”, o qual ambos compartilhávamos da visão
de que estava bastante desgastado e era mau conhecido e “mau usado”, fosse por
ignorância ou mesmo intenções não muito nobres.
Meu amigo possuía as
bênçãos para conduzir a cerimônia de Tenda do Suor e era portador de um Cachimbo Sagrado, a “Shanupa”, recebidos após a realização de ritos na linhagem
da Tradição do Fogo Sagrado de Itzachilatlán - FSI.
Ele dizia-me o quanto
sentia-se incomodado quando as pessoas o chamavam de “xamã”, o que ele
considerava não ser. O “título” soava-lhe distante da Tradição a qual era ligado
e também recordava-lhe de maneira específica os indígenas das planícies dos
atuais Estado Unidos, apesar de que o desenho cerimonial e os ensinamentos
desses povos serem um dos que a Tradição do FSI fundamenta-se e adota.
Eu contrapunha seu
argumento, mesmo concordando em parte com ele. A confusão é grande, o termo é
muitas vezes utilizado para designar o “especialista”, curandeiro e “sacerdote”
das tribos das planícies do norte e de outras tradições nativas das Américas,
porém sua origem é das regiões da Sibéria e Mongólia. Para alguns povos da
América do Norte, são usados os termos “Homem Sagrado” e “Homem de Medicina” (também
empregado pelo FSI).
A partir da palavra
“Saman”, denominação siberiana dada à pessoa que dominava e utilizava um conjunto
de práticas ancestrais de cura, êxtase, devoção e conexão com o transcendente,
foi cunhado, por antropólogos, o termo “xamanismo” e o praticante é chamado de
“xamã”.
Dessa forma,
efetivamente, com exceção dos originários das estepes da Mongólia e da Sibéria,
nenhum “xamã” é “xamã”! Nisso concordava com meu amigo e compreendia seu
desconforto em ser chamado por esse nome.
Por outro lado, tendo
em vista a necessidade de nomes, rótulos e conceitos da sociedade moderna e a
dificuldade de encontrar outra nomenclatura melhor, defendia a utilização do
termo “xamanismo” por ser ao menos uma referência para muitas pessoas sobre
essas práticas ancestrais. Se não fosse a palavra “xamanismo”, que outro termo
podíamos utilizar? Ao menos, que “rótulo” ou conceito seria inteligível à
grande maioria das pessoas? Chamar uma Cerimônia como a Tenda do Suor de
“prática/ritual ancestral para cura, limpeza e conexão com o sagrado” seria
mais acertado, porém dizer isso todas às vezes que se fosse fazer referência ao
trabalho seria bastante desgastante, além de não traduzir para a maioria das
pessoas o que significava. “Xamanismo” é muito mais prático!
Assim, com muita
franqueza, digo que “xamanismo” nada mais do que um “rótulo”, uma nomenclatura
para englobar um universo amplo e múltiplo! Porém, com essa afirmação, não
pretendo retirar do fenômeno “xamânico” (e consequentemente do “xamã”) sua
sacralidade e importância.
Naquela época da
conversa com meu amigo eu já pensava assim e atualmente, mais do que nunca,
esse tema deve ser abordado pois vejo a confusão cada vez maior, à medida em
que o fenômeno “xamanismo” se expande e se difunde, multiplicando-se e
replicando-se, surgindo “rótulos” e “derivados” como “neo-xamanismo”,
“xamanismo urbano” e “xamãs de plástico”!
Nesse ponto, parece
ser importante uma definição de “xamanismo”, então, arregacemos as mangas e
vamos lá!
Xamanismo é o nome
dado à primigênia forma do ser humano se conectar ao sagrado, suas origens
remontam a 40 ou 50.000 anos atrás, no período paleolítico. Como já foi dito, a
palavra tem origem na Sibéria, e passou a ser usada pelos antropólogos para
definir um conjunto de práticas ancestrais de cura, êxtase, devoção e conexão
com o transcendente. Esse conjunto de práticas é encontrado em todo o mundo, o
que transforma o xamanismo em um fenômeno universal essencialmente humano.
Por sua antiguidade, o
xamanismo pode ser considerado a mais antiga prática espiritual da humanidade,
em seus fundamentos está o reconhecimento do sagrado e transcendente, o
respeito pela ecologia, a relacionalidade e interconectividade de tudo, a
necessidade de expansão da consciência humana e a comunicação com outros
mundos, dimensões e realidades.
O aspecto ecológico do
xamanismo surge como o resultado do princípio de relacionalidade onde nada
existe isolado, toda manifestação, fenômeno ou ser está conectado e interage
com todos os outros aspectos da realidade ou realidades. Ele é fruto do estudo
meticuloso, interação e aprendizado do ser humano com o “livro” sagrado de
todas as tradições xamânicas: a Natureza!
E por que, nos dias de hoje, segunda década do
século XXI, o fenômeno “xamanismo” encontram-se em expansão? Para mim, a
explicação é a própria natureza! O rompimento ou a ilusão de rompimento do ser
humano com a natureza estão causando tantos danos às pessoas e ao planeta, que
o xamanismo apresenta-se como um caminho espiritual coerente e atrativo ao
anseio pelo reequilíbrio nas relações entre a espécie humana e o seu entorno!
A atual crise em todas
as áreas da vida humana global nos leva a buscar respostas em algo sólido e que
já foi “testado” no passado e que nos traga respostas e amenize a angustia e o
vazio da vida moderna. E o que melhor do que algo que já foi usado e
reconhecido como eficaz, trazendo resultados efetivos à milênios!?
Além disso, coerente
com a visão cíclica da Natureza e a lei do “Eterno Retorno”, o conhecimento e a
sabedoria ancestral retornam para trazer saúde e paz à tribo humana e honrar o
rezo e as profecias dos antigos!
Mas, voltando uma vez
mais à conversa com meu amigo, feita há tempos atrás, o fato de ser uma
nomenclatura confortável para definir o fenômeno, não faz do “xamanismo” e do
“xamã” algo banal e isento de sacralidade e respeito, muito pelo contrário.
E aí chegamos em um
dos pontos principais, pilar e fundamento do fenômeno “xamânico”, a
“Ancestralidade”!
Compreendo e aceito
muitas pessoas como terapeutas, curadores e espiritualistas dizerem que fazem
uso de recursos “xamânicos” e do “xamanismo”, porém é difícil de “engolir” a
grande quantidade de “xamãs”, “iniciações” e “escolas xamânicas” sem relação
alguma com nenhuma Linhagem ou Tradição Ancestral!
Como um(a) xamã
moderno(a) pode se chamar assim, se carece de uma linhagem ancestral legítima
ou não se insere em uma Tradição sólida e reconhecida?
Apesar de muitos
desses “xamãs” terem uma prática fundamentada no conhecimento dos antigos, lhes
falta a solidez, o apoio e a legitimidade de uma Tradição. É a isso que
chamamos de “linhagem”, pois, como uma “linha”, une o passado ao presente. A
experiência acumulada, muitas vezes por milênios, chega à atualidade e se
manifesta na pessoa daquele que a representa e que, principalmente por meio de
ritos, iniciações e por merecimento, conquistou o acesso à Sabedoria e à Força da
Tradição.
Por outro lado, muitos
do ditos “xamãs” atuais, aprenderam por meio da leitura de livros, faltando-lhes
o aspecto prático e a experiência “concreta”, ou receberam seu “título” em “iniciações/workshops
de final de semana”,
É claro que a conexão
com as forças da Natureza, Espíritos Guardiões, Poderes das Quatro Direções, a
Energia Primigênia, o Criador, Deus, Grande Espírito e com a Mãe Terra não são
exclusividade de uns poucos e privilegiados eleitos! Porém, verdade seja dita,
quantos andam se afirmando os intermediários dessas forças e poderes sem terem
o suporte, amparo e apoio dos que trilharam esse Caminho antes de nós?
Se o Xamanismo se
entende pela Natureza, usemos uma analogia com a Natureza, que árvore cresce
forte, frondosa, floresce dá bons frutos se não possui raízes igualmente forte
e proporcionalmente grandes?
Atualmente existem
muitos “xamãs” sem raízes! E o pior, muitos a segui-los em busca de cura e
“bons frutos”!
É possível uma pessoa
se curar e encontrar o que busca guiado por tal “xamã desraizado”? Claro, como
já disse, a conexão com o sagrado não é propriedade de ninguém. Porém, os
frutos, apesar da boa aparência inicial, dependendo da origem, podem ser
amargos no final.
Compreendo que trilhar
esse Caminho não é inventar a roda! É caminhar com carinho e firmeza na Mãe
Terra, honrando o Caminhar de Todos(as) que Caminharam antes de nós! Se não
houver a Ancestralidade, é outra coisa, mas não Xamanismo!
Reconhecer a Sabedoria
e os ditames dos que vieram antes de nós, isso é muito Belo! Honrar os antigos,
nossos pais e avós, a Ancestralidade presente em uma linhagem humana e nos
outros reinos, reconhecendo-nos parentes das plantas, dos animais, das rochas e
filhos da Terra!
Muitos, nos milênios
de práticas, já “testaram” fizeram um Caminho, retornando para nos dizer o rumo
a seguir.
Certa vez escutei um
Homem de Medicina dizer: “Nesse Caminho não há atalhos!” E aí como fica o
“Xamanismo Fast Food”? De “iniciações” rápidas e de teorias vazias de práticas?
Cheio de atalhos e pressa? Algumas vezes buscando, da mesma forma, resultados
imediatos e egoístas, sem se pensar a Coletividade e o Bem Comum, mesmo quando
proclama: “Por Todas as Nossas Relações”?
Um “xamanismo” que
pede Prosperidade material esquecendo-se que outro “fundamento xamânico” é o
reconhecimento da relacionalidade dos opostos complementares! Ou seja, para se
pedir para a Matéria, é necessário o Espírito! Sem isso não há Equilíbrio!
Senti de escrever esse
texto após constatar tanta desinformação sobre o termo “xamanismo” e pior,
tanto desrespeito aos antigos, às Tradições Ancestrais e à Sabedoria deixada
por Avós e Avôs!
Por fim, lembro-me de
um ensinamento que sintetiza outro “fundamento xamânico”, a Humildade: um
verdadeiro xamã, muitas vezes, não se auto intitula como tal!
E aí me lembro do
desconforto de meu amigo e, hoje, partilho desse sentimento.
Por outro lado, afirmo
com muito orgulho, respeito e humildade que trabalho com Xamanismo!
Por Todas as Nossas
Relações e em respeito e reverência aos nossos Ancestrais e Avós e Avôs desse
Caminho!
Eu sou Ka Ribas e
assim falei!
Aho Metakiase!
Aho Metakiase!
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