sexta-feira, 13 de março de 2015

ANCESTRALIDADE E XAMANISMO

 Recordo-me que, há alguns anos atrás, conversava com um amigo, que já naquela época conduzia cerimônias ancestrais, sobre o termo “xamanismo”, o qual ambos compartilhávamos da visão de que estava bastante desgastado e era mau conhecido e “mau usado”, fosse por ignorância ou mesmo intenções não muito nobres.  
 Meu amigo possuía as bênçãos para conduzir a cerimônia de Tenda do Suor e era portador de um Cachimbo Sagrado, a “Shanupa”, recebidos após a realização de ritos na linhagem da Tradição do Fogo Sagrado de Itzachilatlán - FSI. 
 Ele dizia-me o quanto sentia-se incomodado quando as pessoas o chamavam de “xamã”, o que ele considerava não ser. O “título” soava-lhe distante da Tradição a qual era ligado e também recordava-lhe de maneira específica os indígenas das planícies dos atuais Estado Unidos, apesar de que o desenho cerimonial e os ensinamentos desses povos serem um dos que a Tradição do FSI fundamenta-se e adota.
 Eu contrapunha seu argumento, mesmo concordando em parte com ele. A confusão é grande, o termo é muitas vezes utilizado para designar o “especialista”, curandeiro e “sacerdote” das tribos das planícies do norte e de outras tradições nativas das Américas, porém sua origem é das regiões da Sibéria e Mongólia. Para alguns povos da América do Norte, são usados os termos “Homem Sagrado” e “Homem de Medicina” (também empregado pelo FSI).
 A partir da palavra “Saman”, denominação siberiana dada à pessoa que dominava e utilizava um conjunto de práticas ancestrais de cura, êxtase, devoção e conexão com o transcendente, foi cunhado, por antropólogos, o termo “xamanismo” e o praticante é chamado de “xamã”.
 Dessa forma, efetivamente, com exceção dos originários das estepes da Mongólia e da Sibéria, nenhum “xamã” é “xamã”! Nisso concordava com meu amigo e compreendia seu desconforto em ser chamado por esse nome.
 Por outro lado, tendo em vista a necessidade de nomes, rótulos e conceitos da sociedade moderna e a dificuldade de encontrar outra nomenclatura melhor, defendia a utilização do termo “xamanismo” por ser ao menos uma referência para muitas pessoas sobre essas práticas ancestrais. Se não fosse a palavra “xamanismo”, que outro termo podíamos utilizar? Ao menos, que “rótulo” ou conceito seria inteligível à grande maioria das pessoas? Chamar uma Cerimônia como a Tenda do Suor de “prática/ritual ancestral para cura, limpeza e conexão com o sagrado” seria mais acertado, porém dizer isso todas às vezes que se fosse fazer referência ao trabalho seria bastante desgastante, além de não traduzir para a maioria das pessoas o que significava. “Xamanismo” é muito mais prático!
 Assim, com muita franqueza, digo que “xamanismo” nada mais do que um “rótulo”, uma nomenclatura para englobar um universo amplo e múltiplo! Porém, com essa afirmação, não pretendo retirar do fenômeno “xamânico” (e consequentemente do “xamã”) sua sacralidade e importância.
 Naquela época da conversa com meu amigo eu já pensava assim e atualmente, mais do que nunca, esse tema deve ser abordado pois vejo a confusão cada vez maior, à medida em que o fenômeno “xamanismo” se expande e se difunde, multiplicando-se e replicando-se, surgindo “rótulos” e “derivados” como “neo-xamanismo”, “xamanismo urbano” e “xamãs de plástico”!
 Nesse ponto, parece ser importante uma definição de “xamanismo”, então, arregacemos as mangas e vamos lá!  
 Xamanismo é o nome dado à primigênia forma do ser humano se conectar ao sagrado, suas origens remontam a 40 ou 50.000 anos atrás, no período paleolítico. Como já foi dito, a palavra tem origem na Sibéria, e passou a ser usada pelos antropólogos para definir um conjunto de práticas ancestrais de cura, êxtase, devoção e conexão com o transcendente. Esse conjunto de práticas é encontrado em todo o mundo, o que transforma o xamanismo em um fenômeno universal essencialmente humano.
 Por sua antiguidade, o xamanismo pode ser considerado a mais antiga prática espiritual da humanidade, em seus fundamentos está o reconhecimento do sagrado e transcendente, o respeito pela ecologia, a relacionalidade e interconectividade de tudo, a necessidade de expansão da consciência humana e a comunicação com outros mundos, dimensões e realidades.
 O aspecto ecológico do xamanismo surge como o resultado do princípio de relacionalidade onde nada existe isolado, toda manifestação, fenômeno ou ser está conectado e interage com todos os outros aspectos da realidade ou realidades. Ele é fruto do estudo meticuloso, interação e aprendizado do ser humano com o “livro” sagrado de todas as tradições xamânicas: a Natureza!
 E por que, nos dias de hoje, segunda década do século XXI, o fenômeno “xamanismo” encontram-se em expansão? Para mim, a explicação é a própria natureza! O rompimento ou a ilusão de rompimento do ser humano com a natureza estão causando tantos danos às pessoas e ao planeta, que o xamanismo apresenta-se como um caminho espiritual coerente e atrativo ao anseio pelo reequilíbrio nas relações entre a espécie humana e o seu entorno!
 A atual crise em todas as áreas da vida humana global nos leva a buscar respostas em algo sólido e que já foi “testado” no passado e que nos traga respostas e amenize a angustia e o vazio da vida moderna. E o que melhor do que algo que já foi usado e reconhecido como eficaz, trazendo resultados efetivos à milênios!?
 Além disso, coerente com a visão cíclica da Natureza e a lei do “Eterno Retorno”, o conhecimento e a sabedoria ancestral retornam para trazer saúde e paz à tribo humana e honrar o rezo e as profecias dos antigos!
 Mas, voltando uma vez mais à conversa com meu amigo, feita há tempos atrás, o fato de ser uma nomenclatura confortável para definir o fenômeno, não faz do “xamanismo” e do “xamã” algo banal e isento de sacralidade e respeito, muito pelo contrário.
 E aí chegamos em um dos pontos principais, pilar e fundamento do fenômeno “xamânico”, a “Ancestralidade”!
 Compreendo e aceito muitas pessoas como terapeutas, curadores e espiritualistas dizerem que fazem uso de recursos “xamânicos” e do “xamanismo”, porém é difícil de “engolir” a grande quantidade de “xamãs”, “iniciações” e “escolas xamânicas” sem relação alguma com nenhuma Linhagem ou Tradição Ancestral!
 Como um(a) xamã moderno(a) pode se chamar assim, se carece de uma linhagem ancestral legítima ou não se insere em uma Tradição sólida e reconhecida?
 Apesar de muitos desses “xamãs” terem uma prática fundamentada no conhecimento dos antigos, lhes falta a solidez, o apoio e a legitimidade de uma Tradição. É a isso que chamamos de “linhagem”, pois, como uma “linha”, une o passado ao presente. A experiência acumulada, muitas vezes por milênios, chega à atualidade e se manifesta na pessoa daquele que a representa e que, principalmente por meio de ritos, iniciações e por merecimento, conquistou o acesso à Sabedoria e à Força da Tradição.
 Por outro lado, muitos do ditos “xamãs” atuais, aprenderam por meio da leitura de livros, faltando-lhes o aspecto prático e a experiência “concreta”, ou receberam seu “título” em “iniciações/workshops de final de semana”,
 É claro que a conexão com as forças da Natureza, Espíritos Guardiões, Poderes das Quatro Direções, a Energia Primigênia, o Criador, Deus, Grande Espírito e com a Mãe Terra não são exclusividade de uns poucos e privilegiados eleitos! Porém, verdade seja dita, quantos andam se afirmando os intermediários dessas forças e poderes sem terem o suporte, amparo e apoio dos que trilharam esse Caminho antes de nós?
 Se o Xamanismo se entende pela Natureza, usemos uma analogia com a Natureza, que árvore cresce forte, frondosa, floresce dá bons frutos se não possui raízes igualmente forte e proporcionalmente grandes?
Atualmente existem muitos “xamãs” sem raízes! E o pior, muitos a segui-los em busca de cura e “bons frutos”!
 É possível uma pessoa se curar e encontrar o que busca guiado por tal “xamã desraizado”? Claro, como já disse, a conexão com o sagrado não é propriedade de ninguém. Porém, os frutos, apesar da boa aparência inicial, dependendo da origem, podem ser amargos no final.
 Compreendo que trilhar esse Caminho não é inventar a roda! É caminhar com carinho e firmeza na Mãe Terra, honrando o Caminhar de Todos(as) que Caminharam antes de nós! Se não houver a Ancestralidade, é outra coisa, mas não Xamanismo!
 Reconhecer a Sabedoria e os ditames dos que vieram antes de nós, isso é muito Belo! Honrar os antigos, nossos pais e avós, a Ancestralidade presente em uma linhagem humana e nos outros reinos, reconhecendo-nos parentes das plantas, dos animais, das rochas e filhos da Terra!
 Muitos, nos milênios de práticas, já “testaram” fizeram um Caminho, retornando para nos dizer o rumo a seguir.
 Certa vez escutei um Homem de Medicina dizer: “Nesse Caminho não há atalhos!” E aí como fica o “Xamanismo Fast Food”? De “iniciações” rápidas e de teorias vazias de práticas? Cheio de atalhos e pressa? Algumas vezes buscando, da mesma forma, resultados imediatos e egoístas, sem se pensar a Coletividade e o Bem Comum, mesmo quando proclama: “Por Todas as Nossas Relações”?
 Um “xamanismo” que pede Prosperidade material esquecendo-se que outro “fundamento xamânico” é o reconhecimento da relacionalidade dos opostos complementares! Ou seja, para se pedir para a Matéria, é necessário o Espírito! Sem isso não há Equilíbrio!
 Senti de escrever esse texto após constatar tanta desinformação sobre o termo “xamanismo” e pior, tanto desrespeito aos antigos, às Tradições Ancestrais e à Sabedoria deixada por Avós e Avôs!
 Por fim, lembro-me de um ensinamento que sintetiza outro “fundamento xamânico”, a Humildade: um verdadeiro xamã, muitas vezes, não se auto intitula como tal!
 E aí me lembro do desconforto de meu amigo e, hoje, partilho desse sentimento.
 Por outro lado, afirmo com muito orgulho, respeito e humildade que trabalho com Xamanismo!
 Por Todas as Nossas Relações e em respeito e reverência aos nossos Ancestrais e Avós e Avôs desse Caminho!
 Eu sou Ka Ribas e assim falei!
 Aho Metakiase!

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