domingo, 22 de maio de 2011
A RESSURREIÇÃO DOS INCAS
Entrevista com o escritor peruano Manuel Scorza, publicada no L'EXPRESS - Número 1144 - 11/17 de junho de 1973 - Trad. Jeter J.Neves
Um romancista que pesa na decisão de um general, não se vê isso todo dia. Aconteceu no Peru. Logo após a publicação do livro de Manuel Scorza, "Rufar de Tambores por Rancas", que conta a última das grandes rebeliões indígenas de 1960. A narrativa dessa tragédia transtornou a América Latina. Um dos rebeldes, que se encontrava em uma prisão há 11 anos lhe deve sua liberdade. Manuel Scorza descreve o Peru desconhecido, o Peru de 7 milhões de índios salvos de um genocídio cultural e humano ao longo de 450 anos.
L´Express : Você é um escritor de língua espanhola. E é pelo menos em parte, um índio. Como você vive essa contradição?
Scorza : O meu lugar na sociedade peruana é a de um mestiço. Há no Peru 50% de índios, 45% de mestiços e 5% de brancos. Minha mãe era índia, ela pertencia a uma comunidade da serra central, e eu passei toda minha infância num vilarejo da Cordilheira dos Andes, onde ela nascera. Mas meu pai era camponês, minha língua materna é o espanhol e não o quetchua.
L´Express : Como você conseguiu estudar?
Scorza : Fiz o curso primário em escolas públicas. Meus pais não tinham recursos para pagar meu curso secundário, felizmente consegui uma bolsa de estudo. O que me permitiu, mais tarde, ir para a Universidade São Marcos, em Lima. Em seguida, para a Universidade do México, quando fui exilado para lá, na ditadura do General Odria.
L´Express : Você já mexia com política?
Scorza : Eu fazia parte da redação de um jornal de oposição ao regime. Nós fomos todos presos depois do golpe de Estado de 1948. Eu não tinha publicado nem um texto político, apenas um poema de amor que me custou um ano de prisão e 7 de exílio. Eu escrevia poemas desde a idade de 16 anos.
L´Express : Você já achava que a literatura serve melhor à causa política do que a polêmica?
Scorza : A denúncia puramente política de uma situação é, na maioria das vezes, coberta de demagogia. E meu combate era mais humano e cultural do que estritamente político. O que eu tinha ouvido de meus pais conduziu-me bem cedo à luta. Suas narrativas me deram uma espécie de fúria, de dor. Primeiro meu pai tinha trabalhado quase como escravo na exploração de borracha na Amazônia. E tinha conseguido fugir e ir trabalhar numa plantação de cana de açúcar. Ele me descrevia os abusos horríveis que havia presenciado e sido vítima. Como por exemplo, os homens (às vezes ele próprio) eram obrigados, para limpar os fornos incandescentes, a se cobrirem de sacos molhados e a trabalhar muito rápido. Os que não calculavam bem o tempo eram atrozmente queimados e morriam, às vezes, num sofrimento pavoroso. Minha mãe me contava o que se passava nas fazendas de Huancavelica, no centro do Peru. Levados ao desespero por uma exploração intolerável, os índios de uma comunidade tinham se sublevado e assassinado o seu patrão. Eles não permitiam que se velasse o seu corpo. Só permitiram que se colocasse uma vela em cada uma de suas mãos, para que o morto velasse a si próprio. E eles foram, é claro, massacrados. Então, naturalmente, a grande revolta camponesa de 1960 foi uma reviravolta decisiva na minha vida. Ela está na origem de meus romances.
L´Express : Você escreveu quantos?
Scorza : Cinco. Todos eles contam episódios dessa luta, que foi a última grande rebelião indígena do Peru. Houve centenas delas depois da Conquista. Pois a cultura indígena só sobreviveu à custa de um genocídio permanente. Eu via alucinado como a cada luta sucedia um massacre, e ao massacre de novo a luta. E tudo isso no silêncio e no anonimato dos altiplanos da cordilheira, a 5 mil metro de altura e a 5 ou 6 dias de marcha de uma cidade, lá onde tudo é possível.
L´Express : O que aconteceu em 1960?
Scorza : Uma cerca, uma inexplicável cerca de arame farpado, aparece um dia no planalto de Cerro de Pasço, a cidade mais alta do mundo, e começa a avançar, como uma serpente mitológica, devorando colinas e montanhas, barrando os caminhos, cercando aldeias e cidades, cortando o acesso às fontes de água, engolindo dezenas de quilômetros, antes que se saiba - tarde demais - que ela era obra de uma companhia de mineração americana, que tentava, por este meio, expulsar os camponeses de suas terras. As autoridades peruanas atacadas por uma misteriosa doença dos olhos "não viam" aquela cerca. Na verdade, a Cerro do Pasco Corporation tinha subornado a polícia e colocado as autoridades de seu lado.
Meus amigos índios me pediram para ajudá-los, informando aos jornais. Eu fui lá, e pensei que seria necessário que as comunidades se unissem e se confederassem para continuar o combate juntos. Tornei-me secretário geral do movimento. Participei da luta, sem, friso bem, ter o papel principal. Graças a essa fraternidade muito particular que a luta cria, eu consegui furar o muro da desconfiança que separa os índios dos outros, eu descobri um mundo ofuscante, de gente extraordinária. Eu conheci homens extraordinários: o ladrão de cavalos, que pretendia saber tudo porque ele "falava perfeitamente" a língua dos animais; "Rouba-Estábulos" que se ria dos planos da polícia porque ele "via o futuro nos sonhos" e sabia antecipadamente o que ia acontecer.
L´Express : E você conseguiu mobilizar a opinião pública?
Scorza : Quando eu entrei em Lima, com informações terríveis, nenhum jornal quis publicá-las. Houve um bloqueio total na imprensa peruana. A denúncia política havia fracassado, mas os horrores continuaram. Depois, um dia, encontrei em Lima um índio que me disse: "Sim, a perseguição está cada vez mais forte, mas as únicas testemunhas são gente como eu, analfabetos. É uma pena..."
A frase me transtornou. Resolvi contar essa epopéia e seus heróis, como só um índio, engajado numa guerra física e espiritual contra seus opressores ocidentais, teria podido fazer.
L´Express : Mas essa epopéia você contou em espanhol?
Scorza : Sim, evidentemente. Mas no Peru houve um espanto muito grande por eu ter ousado fazer literatura com os índios. Nunca faltou escritor latino-americano para descrever o sofrimento dos mujiques russos. Falava-se nos seus livros, de isbás e samovaros... Foram-nos precisos séculos para descobrir que os servos que se procurava na Rússia estavam ali ao nosso lado: eram aqueles mesmos que serviam o chá ou a cachaça. Para que aquele livro pudesse ser escrito foram necessários vários séculos de combate cultural.
L´Express : Ele é, ao mesmo tempo, admiravelmente escrito e contado.
Scorza : Eu sou um contista. Para nós, latino americanos, o problema do romance é muito diferente do que ele é no Ocidente, onde, no seu estágio de civilização, o romance é raramente ético. Os jornalistas que fizeram uma enquête sobre a realidade do meu livro - a realidade da realidade - perceberam que ele era lido em praças públicas. É que eu adotei uma espécie de tom oral. Hoje nós começamos a escrever como falamos. Estamos livres da tirania do dicionário espanhol. É uma conseqüência da Guerra da Espanha, que nos cortou a capital cultural que era até então, Madri.
L´Express : Os índios, personagens de seu livro, são apresentados como sendo voluntariosos. A visão européia do índio é mais a de um homem fatalista e passivo.
Scorza : Sim, embrutecido pela miséria e pela droga... Uma espécie de pedra ou vegetal... O índio não é um estúpido. Ele acaba sendo-o para melhor se proteger. Ele só pode sobreviver pela resistência passiva. Ele caminha lentamente, ele faz as coisas lentamente, porque se ele fizesse da maneira ocidental, ele seria rapidamente dissolvido, aniquilado.
L´Express : A palavra "pedra", é a mesma que empregava Che Guevara: "caras de piedra".
Scorza : Ele conhecia ou não conhecia a realidade indígena? É uma pergunta que procede. Ele conhecia bem, evidentemente, a realidade revolucionária da América do Sul. Mas era um homem das planícies argentinas. E, sobretudo, era um branco. Na Bolívia, no Peru, basta ser branco para suscitar desconfiança. Brancos são aqueles que há mais de quatro séculos não param de massacrar, sistematicamente. A realidade indígena já tem na sua origem um caráter de impenetrabilidade. Pois, para sobreviver, os índios tiveram de submergir sua etnia, sua psicologia, em síntese, dissimular sua alma. Não se esqueçam que no começo da conquista, os teólogos espanhóis discutiram durante anos para saber se o índio tinha - ou não - uma alma! Contestou-se sua condição humana. A conquista significou para nós a despersonalização absoluta.
L´Express : O que é a realidade indígena?
Scorza : No meu segundo romance: "Garabombo, o Invisível" (um homem que eu conheci e que me mostrou o ponto "onde ele tinha se tornado invisível"), eu conto porque é difícil para a polícia infiltrar-se nas organizações comunitárias. Ela tinha notado que os "comuneros" fingiam construir uma escola para poder, sob este pretexto, se reunir e ser organizar. Pois o estado de sítio tinha sido proclamado e rigorosamente aplicado. Como a polícia ficara a par? Eu não sei, pois se fossem descobertos os traidores no meio da população, seriam eliminados sumariamente. Exatamente como no meu livro, Nyctalope executa "Corta Orelhas", homem a serviço dos proprietários - dos fazendeiros - e que colecionava as orelhas daqueles que eram encarregados de assassinar.
A polícia, então, chega no lugar. O que faz o Chefe da comunidade? Ele dá ordem para responder sim a todas as perguntas. O interrogatório começa: "Vocês são da aldeia? - Sim. - Vocês sabem que nós somos da polícia? - Sim. - Aqui acontecem coisas suspeitas. Vocês sabem? - Sim. - Vieram agitadores aqui? - Sim. - Podem dar seus nomes? - Sim. - Então dêem! - Sim. - Vocês são idiotas ou imbecis? - Sim." As autoridades haviam baixado, sem suspeitar, no estado maior, que preparava a grande rebelião que ia explodir algumas semanas mais tarde. E eles foram embora dando de ombros. A polícia tinha concluído seu relatório dizendo: "Trata-se de seres completamente estúpidos, totalmente imbecis. Não há nada a se esperar deles". Muitos observadores europeus vêem, ainda hoje, a América Latina como um continente em grande parte economicamente miserável e politicamente caótico, uma colméia de repúblicas tragicômicas, que se vivem entre o terror e o folclore. A impressão que o mundo indígena dá é ainda mais lamentável. À sombra dos templos maias e das ruínas imponentes de Machu Picchu sobrevive uma população de seres aniquilados fantasmagóricos.
L´Express : E essa imagem é falsa?
Scorza : Nessa interpretação que nos propõe da América Latina, há uma omissão fundamental: ignora-se simplesmente o panorama histórico desse continente, antes da conquista. Esse mundo, hoje em farrapos, foi antes da conquista, um mundo mágico, vigoroso, coerente. Basta ver o que resta hoje da época pré-colombiana - a poesia, a mitologia, a cerâmica, os monumentos, tecelagem - para se ter uma idéia de que essas culturas tinham atingido, na arte e no pensamento, um nível raramente ultrapassado da história. O calendário Maia estabelecera um ano de 365 dias e o sistema decimal, para o qual se pressupõe conhecimentos sistemáticos e astronômicos superiores. Suas pinturas, sua cerâmica, eram tão ricas, tão complexas, quanto as de um Picasso, de um Iraque ou de um Kandinsky.
Os índios da América Latina são os sobreviventes de um naufrágio histórico que se produziu há 450 anos, com a morte de seus deuses. É uma tragédia pior ainda que uma hecatombe atômica - porque essa não pressupõe necessariamente a morte definitiva da idéia de Deus. Os sobreviventes das culturas pré-colombianas sofreram a destruição de todo seu horizonte cultural.
L´Express : Por que, segundo você, as civilizações pré-colombianas resistiram tão mal ao choque com o ocidente?
Scorza : Os povos ameríndios acreditavam-se os únicos habitantes da terra. Como escreveu Nathan Wachtel, a chegada dos espanhóis foi para eles o que seria para nós a chegada dos marcianos. Quando, em 1938, Orson Welles, numa transmissão radiofônica, imaginou a invasão da terra por seres extraterrenos, ele provocou uma onda de histeria e de terror. É exatamente o que se passou na América Latina. Quando os espanhóis chegaram ao Peru, o império Inca tinha uma população de 15 milhões de habitantes. Cinqüenta anos mais tarde, restavam apenas 2 milhões de habitantes. Massacres, extermínios, surtos de varíola, que mataram milhões de índios, evidentemente. Mas também ondas de suicídio coletivo. No Peru, populações inteiras se suicidaram atirando-se, aos milharais, no fundo de precipícios.
L´Express : Como você explica esses suicídios coletivos?
Scorza : Pelo terror metafísico, pela crença em um "julgamento final" trazido por implacáveis deuses em fúria. O império Inca não tinha problemas econômicos, ele era fortemente organizado, e bem administrado. Dominava todo o território que constitui hoje o Peru, a Bolívia, o Equador, a metade da Colômbia, o norte do Chile e da Argentina. Os Incas eram um povo combativo e corajoso. Não pode tratar-se de medo físico.
L´Express : Num império tão solidamente estruturado, tão fortemente centralizado, o simples desaparecimento do chefe ou dos chefes não seria suficiente para explicar o terror das populações entregues a si mesmas?
Scorza : O choque se produziu fundamentalmente entre uma cultura que se assentava sobre concepções mágicas da vida, da história, e todas as culturas cujo resultado era o homem da Renascença, aquele homem já começava a ser lógico. A filosofia pessimista e fatalista dos Incas e dos Astecas os tornavam incapazes de enfrentar o homem agressivo da Renascença européia.
L´Express : Essa cultura mágica era, no entanto, dura, impiedosa, exigia sacrifícios humanos.
Scorza : A inquisição na Europa, não foi sacrificial? Suas guerras religiosas não foram duras, impiedosas? Não há termo de comparação. O sacrifício de que vocês falam eram sacrifícios sagrados. Os Maias tinham uma concepção cíclica do tempo. Eles acreditavam que de 52 em 52 anos, o mundo deveria (ou poderia) morrer. Para evitar a morte do universo, os Astecas adotaram o papel do povo eleito (eis aí uma coincidência com o povo judeu). Eles se sacrificavam para manter a alma do universo, nutrindo-a de sangue. Esse universo segundo os Maias, já tinha conhecido a morte quatro vezes.
A quinta era - o quinto sol - também devia fatalmente sucumbir. Esse fatalismo caracteriza, aliás, toda a literatura Nahuatl .
L´Express : Em suma, estava escrito?
Scorza : Mais do que escrito. Estava marcado, como, por exemplo, para o México (mas vale também para o Peru) uma data precisa. Isso parece incrível, mas, segundo as escrituras Astecas, o deus Quetzalcoatl deveria reaparecer numa data que é o quivalente do 25 de janeiro de 1519. Ora, os espanhóis chegaram no dia 22 de abril de 1519. Quando os conquistadores chegam, não é o seu exército que o imperador do México envia, são seus melhores mágicos. Montezuma não sonha nem um momento em eliminar os espanhóis fisicamente. Já que eles são considerados como divinos, o perigo só pode ser conjurado pela magia. E quando os mágicos fracassam, é tarde demais. Montezuma brada: "estamos perdidos!" E de fato eles o estavam. Para que os mexicanos se lançassem ao combate, seria preciso que seus matemáticos calculassem de novo o calendário e que eles determinassem que poder-se-ia desobedecer a profecia fatal.
No Peru, também os Incas esperavam a volta do deus Wiracocha, que, segundo a mitologia, seria branco e teria uma barba. O imperador enviou sentinelas para escrutar o mar, por onde eles deveriam chegar. Quando os espanhóis apareceram montados em misteriosos bestas apocalípticas, numa tempestade de cavalos e poeira, os peruanos acreditaram que era a chegada do deus anunciado pela lenda. O mundo pré-colombiano vivia esperando pelo cataclismo, pelo fim do mundo. E para eles, o fim do mundo chegou.
L´Express : Se os espanhóis não tivessem chegado, você acredita que o império não teria sido destruído?
Scorza : Um império é sempre um império. Tem, sua queda. O que é falso, é acreditar que ele foi conquistado por 10 mil espanhóis. É uma impostura que os historiadores latino-americanos estão desvendando. De fato, houve, ao lado dos 10 mil espanhóis, centenas de milhares de índios que se sublevaram contra o império. No princípio, os espanhóis chegaram a provocar o re-agrupamento das facções rebeldes. Só mais tarde, quando os Incas, de alguma maneira, assimilaram o choque espiritual inicial, é que eles próprios capturaram cavalos, armaduras, armas, e se voltaram contra os invasores. Geralmente ignora-se que depois que Pizarro mandou estrangular Ataualpa, em 1533, um Inca lutou, com uma verdadeira cavalaria, durante 8 anos contra os espanhóis. Era o começo dessa guerra invisível que dura perto de 450 anos. O que é verdade, também, é que os espanhóis aplicaram desde os primeiro dias a mentira no jogo político. Nas sociedades teocráticas, a astúcia era desconhecida e incompreensível.
O que é verdade, sobretudo, é que, mesmo se o império - como todos os impérios - fosse um dia destruído, nós não teríamos sofrido por isso a alienação cultural total, a despersonalização absoluta que foi o nosso destino. O objetivo da conquista não foi somente a pilhagem econômica, foi o aniquilamento espiritual do vencido, uma verdadeira pilhagem metafísica. Saqueou-se o ser latino americano até a sua desvalorização absoluta.
L´Express : Quem é o responsável por essa destruição da cultura indígena? Os missionários ou os conquistadores? Pois a conquista, naquela época, era sempre um ato religioso.
Scorza : A Igreja Católica da Espanha era, com efeito, a mais fanática da Europa, e ela não parou de destruir toda a mitologia que era a fonte da alma indígena. Ela entregou-se a essa tarefa conscientemente. Basta ver que na América do Sul, a maior partes das igrejas foi construída sobre as ruínas dos velhos templos.
L´Express : Você é católico?
Scorza : Não. Eu não o sou mais. Eu fui batizado, mas creio que o papel da Igreja Católica foi negativo na América do Sul. Nós lhe devemos, em particular, a inimaginável repressão sexual que lá atua. Nós pagamos muito caro pelo fanatismo espanhol.
L´Express : Um índio que pensa, como você, em termos de cultura indígena, pode ser católico?
Scorza : Existe a forma e o fundo. Na forma, os índios são muito católicos, mas e no fundo?... Eles operaram uma substituição magistral para conservar sua religião antiga: eles mudaram seu calendário, para fazer coincidir as festas do rito antigo com as festas católicas. O que faz com que hoje não se saiba nunca muito bem, o que está sendo celebrado: a semana santa, ou o deus Pariacaca, que tem 5 corpos, porque nasceu de 5 ovos. Durante a guerra camponesa, eu constatei por mim próprio, que os mortos eram velados duas vezes: no primeiro e no quinto dia. Porque se acredita que, no quinto dia, eles ainda podem ressuscitar.
Só se começa a chorar no sexto, porque aí, então, tem-se a certeza de que o morto está bem morto.
L´Express : Você acha possível um renascimento das religiões primitivas?
Scorza : Não é mais possível voltar ao mundo mágico das origens. Mas eu não acredito no desaparecimento total da sabedoria perdida. Nietzsche dizia: "é sempre o mesmo mundo, mas é sempre outro mundo." No mundo inteiro, está-se à procura de novas religiões. O ocidente começa a duvidar de si próprio. Quando ele se sentia seguro de si, ele conquistou e aniquilou as culturas sem se preocupar com aqueles que ele destruía, graças à sua superioridade técnica. Mas hoje ele está assediado pela dúvida e se volta - a procura de um elo perdido, para as culturas dos vencidos. De onde, essa interrogação tão atual, sobre a "visão dos vencidos", que se aplica muito particularmente às cultura pré-colombianas. Cuzco começa a ser um lugar de peregrinação, como era há alguns anos o Nepal.
L´Express : Mas os índios, propriamente, se preocupam com isso? Eles estão, mesmo confusamente, à procura de suas próprias raízes?
Scorza : A cultura indígena não está totalmente morta. No Peru, por exemplo, ela ainda guarda as marcas de um coletivismo, de uma solidariedade, que nenhuma democracia conhece. Nas comunidades, não apenas as mulheres, mas também as crianças têm o direito de voto. É um povo que ainda é capaz de lutar, de elevar-se às dimensões de epopéia. A sua luta, eu a vivi. E eu constatei que a parte mais desdenhada no meu país, era a melhor, a mais nobre, a única capaz de fraternidade, de mágica, de coragem. Somente que o mais grave, na América Latina, não foi a eliminação física da raça indígena, mas a sua minimização espiritual. A humilhação foi a palavra chave da história latino-americana. A conquista fez nascer um complexo de inferioridade coletivo, que ela tornou ainda mais pesado, impondo um modelo de beleza greco-latina, que não corresponde nem ao nosso físico, nem ao nosso corpo. Nossa pele é diferente, nosso nariz é diferente. Nós fomos condenados para o futuro, a ser feios. Este complexo de inferioridade física era tão forte, que durante o período colonial, os que não tinham um tipo físico bem afirmado, e que tinham dinheiro, pagavam uma taxa para mudar oficialmente de cor. Vocês pagariam 10 mil francos para ter um registro de negro ou de índio? Os americanos do sul não foram sempre capazes, como os negros o fizeram, de proclamar e de defender sua identidade étnica.
L´Express : A afirmação de negritude é relativamente recente...
Scorza : Para que cheguemos lá é fundamental que se rejeite primeiro a colossal falsificação cultural que nos levou a situações dramaticamente ridículas. Porque se chega, na Guatemala, por exemplo, a um terrorismo desesperado? Antes da tragédia, houve carnaval e antes do carnaval, a tragédia. O ditador Estrada Cabrera elevou um templo a Minerva. Ele institui festas minervianas e festividades gregas, onde só se podia comparecer vestido de roupas antigas. Vocês podem imaginar: falsos templos gregos, a alguns quilômetros dos admiráveis templos Maias! Tomemos o caso do ditador boliviano Melgarejo, em 1860. Sua amante não era aceita pela sociedade boliviana, que só podia admitir uma primeira dama do país que fosse santificada por um casamento católico. O que fez Melgarejo? Ele organizou um baile para o qual convida toda a sociedade de La Paz. Ninguém ousa recusar o convite, mas os homens chegam desacompanhados. Suas esposas haviam adoecido subitamente. Melgarejo mandou fechar as portas do salão, atravessou a sala e, inclinou-se diante do presidente da Corte Suprema de Justiça, convidou-o para a primeira valsa. E ele obrigou todos os homens a dançar entre si toda a noite.
Vocês imaginam a humilhação que ele infringiu à sociedade boliviana? Pode-se surpreender que Melgarejo, convencido que a "estreiteza de espírito dos bolivianos era devida ao fato de viverem cercados por montanhas", tenha tido a idéia de mandar aplainar o cume do monte Illimani?
L´Express : Isso se passou, mesmo assim, há mais de um século... Mas, e hoje?
Scorza : Há alguns meses, jornalistas europeus que faziam uma enquête na Bolívia sobre o caso Barbia, entrevistaram o ministro da marinha boliviana (a Bolívia tem uma marinha fluvial). Interrogado sobre o problema do nazismo, ele respondeu: "evidentemente, existem raças superiores e raças inferiores. Assim, eu, que tenho 2/3 de sangue índio, sou de uma ração inferior". Mesmo que o ministro tenha sido destituído, o problema persiste. Talvez tudo isso pareça desmedido, para um público europeu, mas, na América Latina, a própria realidade é desmedida. Nossa literatura é fantástica, porque é realista.
L´Express : Você não tem necessidade de fazer apelo à imaginação?
Scorza : Tudo o que eu conto no meu livro é verdadeiro, mesmo o caso de enfarto coletivo. E todos os personagens são verdadeiros. Quando Hugo Blanco começou a criar os sindicatos no sul, na região de Cuzco, "comuneros" se interessaram por eles. Quinze camponeses quiseram organizar um sindicato para defender seus direitos. Eles foram falar com seu proprietário, que contra toda expectativa, os recebeu bem: "É magnífico, contem-me tudo. É preciso se modernizar". Mandou-os assentarem-se, e ofereceu-lhes cachaça. Ele mesmo não bebeu, pois, dizia ele, sofria do estômago. No segundo copo, haviam quinze cadáveres na sala. Tranqüilamente, o proprietário enviou um telegrama ao juiz Montenegro, para anunciar-lhe que quinze camponeses tinham morrido de um enfarto coletivo. E, depois do inquérito, a justiça aceitou essa explicação. O tribunal de Cuzco concluiu tratar-se de um acontecimento médico sem precedentes.
Numa pequena aldeia eu conheci um juiz que aterrorizava toda a população durante 30 anos, através de uma operação "sui generis".
L´Express : Qual?
Scorza : Bastava-lhe sair todos os dias, ao meio dia, para fazer um pequeno passeio e assentar-se num banco para ler durante quinze minutos. Ora ele era juiz e o livro que ele lia era o Código Penal. Ele usava seus olhos todos os dias a reler as penas em que a população incorreria, se ela se rebelasse.
Conheçamos também aquela do ditador da América central que queria punir um opositor. Convocou-o um dia, às dez horas, ao palácio. O dia passou e disseram-lhe: "será amanhã às 8 horas". E ele esperou o dia inteiro do dia seguinte. Isso durou uma semana, um mês, meses, um ano. Assim que ele saia para ir almoçar, um funcionário do palácio chegava e lhe dizia: "o presidente quer vê-lo imediatamente". E o presidente não o recebia nunca.
É como a história da moeda do Dr.Montenegro, que eu conto em "Bom dia aos defuntos". Um dia o juiz deixou cair uma moeda na praça. Ela ficou lá doze meses. Todo mundo vinha olhá-la. Ninguém ousava tocá-la. Muitos menos apanhá-la. E como ninguém queria pronunciar a palavra covardia, arranjaram-se as coisas dizendo: "vejam como nós somos honestos aqui"... Até o dia em que o doutor achou sua moeda e a população suspirou de alívio, libertada de um pesadelo. O que quer dizer, na nossa terra, a palavra "desmedido"?
L´Express : Você quer dizer que a noção de medida não existe na América Latina?
Scorza : Na América Latina, a própria realidade é desmedida. O historiador Arevalo Martinez conta que a Guatemala foi invadida um dia por gafanhotos que devastaram as cultura do país. Preocupado em ganhar os favores do ditador Estrado Cabrera e acreditando que a calamidade estivesse controlada, um deputado propôs à Assembléia votar uma moção de reconhecimento ao presidente pelos esforços que ele havia empreendido. No momento em que a Assembléia se preparava para votar a moção por aclamação, os gafanhotos invadiram a sala de sessão. Temendo as conseqüências de um voto contra, a Assembléia declarou, assim mesmo que a praga estava vencida.
Em São Salvador, o ditador Martinez, tristemente conhecido pelo nome de "Teosofo, o Metralhador", porque mandou assassinar 30 mil camponeses em 1 semana, acreditava na reencarnação. Exigia de todos aqueles que pedissem emprego, um "curriculum vitae" que remontava ao nascimento de Cristo. Se o interessado não fosse capaz de dizer o que era na época das cruzadas, ou de Cristóvão Colombo, perdia qualquer chance de encontrar um emprego.
L´Express : Você conseguiu, através de seu livro, fazer libertar um prisioneiro. Como isto se passou?
Scorza : Sim, Chacon, "Olho de Coruja", segundo tradução aparecida em "O Pasquim", um dos heróis do meu livro, que estava encarcerado no meio da jungle, na "Cayenne" peruana. Um lugar inacessível, onde só aterrizava avião duas ou três vezes por ano.
Todos os que leram meu livro pensavam que Chacon não existisse. Depois, um dia, não sei como, chegou à prisão a revista "Caretas", onde se falava do livro e do meu personagem, Hector Chacon. Ele mandou escrever uma carta para a revista, para dizer: "Eu existo. Eu estou preso há 11 anos". E pediu a um empregado da prisão, que devia ir à cidade daí a cinco semanas, para colocar a carta no correio. Na hora de jogar a carta na caixa, o empregado hesitou porque faltavam 5 centavos para o selo. Finalmente, ele resolveu e a carta chegou.
"Caretas" publicou a carta. Isso provocou um escândalo. Escritores pediram anistia para Chacon. Eu estava em Paris, e voltei ao Peru para pedir sua liberdade. Depois de uma campanha na imprensa - que provou que a literatura não é inútil - o Presidente da República, General Velasco Alvarado anunciou a libertação de Chacon, "símbolo do sofrimento dos camponeses do Peru". Pedi para ir pessoalmente anunciar-lhe sua libertação. Parti no dia seguinte, às 5 horas da manhã, para a Amazônia. E lá, aconteceu algo extraordinário. Chacon não deixara, absolutamente, abater-se na prisão. Ele compusera uma canção, um "huayno", para festejar sua libertação. E quando desceu do avião, pôs-se a dançar e a cantar em quetchua. A televisão retransmitia a cena diretamente, e houve um momento de choque quando as pessoas perceberam que a língua da maioria do povo peruano não era falada em Lima. O homem, que segundo o Presidente da República, simbolizava uma grande parte do país, não falava espanhol. Pouco depois, o homem mais rico do Peru, um sobrinho do antigo Presidente Prado, foi pra cadeia, por crime contra as finanças do Estado.
L´Express : O que é que mudou exatamente? Como você vê a revolução do Peru?
Scorza : A revolução peruana tem apenas cinco anos, desejo que ela não cometa o erro de adotar os critérios de competição, de eficácia, de industrialização, de organização do trabalho das sociedades capitalistas. Sou romancista. Não sou sociólogo nem economista. Eu vejo mais os problemas do que as soluções. Isolar-se hoje é praticar uma forma de agressão. Foi o que fez o Paraguai. E ele foi destruído. O que eu constato é que o governo pôs um fim aos grandes abusos. Mas ele não convida o índio a participar da vida nacional. O índio permanece à parte, e portanto passivo. O tipo de desenvolvimento que propõe o governo é mais do tipo ocidental.
L´Express : Parece, entretanto, que o governo se preocupa bem mais com a agricultura do que os que o precederam.
Scorza : Sim, a revolução dos militares é a mais importante de todas que o Peru conheceu. Foi-lhes preciso muita coragem para agir como o fizeram, num país onde populações inteiras ainda vivem na idade média. Mas seria preciso haver um modelo de desenvolvimento que não rejeitasse a participação dos índios, e isso não há. Porque querer criar cooperativas de concepção ocidental, quando existem no Peru as comunidades, cuja organização sobreviveu a séculos de genocídio?
L´Express : Há contudo, muitos mestiços, para não dizer índios, que são membros do governo?
Scorza : Sim, muitos. A aristocracia branca que, aliás, sempre teve o controle do exército, da Igreja, da Universidade, havia abandonado todas as suas funções no Peru. Lá, o serviço militar só era obrigatório para os índios. Eles puderam, pouco a pouco, galgar esses degraus e, há alguns anos, apercebeu-se que a maioria dos generais eram índios ou de origem indígena. Há sessenta anos atrás, houve casos de regimentos inteiros que, em vez de massacrarem os índios, passaram para seu lado. É o caso do coronel Edelmiro Gutierrez, que, nos anos de 1924-1926, recusou sufocar uma revolta indígena perto do Lago Titicaca. Ele era de sangue índio, sublevou seu regimento contra as autoridades, e mudou seu nome ocidental para um nome quetchua, Rumimaki, que quer dizer, "A Mão de Pedra que Bate".
Ele lutou contra o exército, do qual ele era coronel. Não se sabe como ele morreu. Mas os índios de Puno dizem que ele não morreu, que quando fizeram-no prisioneiro, ele escapou voando, e que ele voltará. O que é verdade é que hoje, os homens do poder são índios ou mestiços e que, pelo menos, eles respeitam os índios.
A grande propriedade feudal foi liquidada. Uma página foi virada no Peru. Antes de tudo, nós lutamos como o Chile, Panamá e o México, contra a interferência de sociedades americanas na economia peruana.
L´Express : Se o modelo de desenvolvimento ocidental não for adaptado, existe uma via original para o Peru? Qual?
Scorza : Não se trata de rejeitar em bloco toda a cultura ocidental. Há e houve, na Europa, conquistadores, homens de negócios e corsários. Mas houve também poetas, revolucionários, que simbolizaram a luta universal entre opressores e oprimidos. O problema do desenvolvimento é diferente para cada país. Devemos fazer no Peru, no século XX uma revolução que deveria ter sido feita no século XIX, quando vocês próprios estão rejeitando o que há de negativo na industrialização exagerada? Espero que seja uma via peruana que os militares estão procurando no Peru.
L´Express : Você acha que, na medida em que um regime se socializa - e este é o caso do governo militar peruano - a condição das populações tem chance de melhorar e que se formaria uma espécie de padronização nacional, onde o indianismo corre o risco de desaparecer?
Scorza : Claro. A cultura indígena está desaparecendo, como aliás, desaparecem em todas as partes do mundo, as civilizações agrícolas. E a revolução áudio-visual que se efetua por todos os lados desempenha, desta maneira, um papel determinante. O rádio age, no Peru, como uma espécie de dissolvente.
L´Express : Os programas são transmitidos unicamente em espanhol?
Scorza : Não. Entre 6 e 8 horas da manhã, há transmissões em quetchua que são muito ouvidas. Mas, o que não se conseguiu destruir com o exército e com a espada, consegue-se, agora, com o rádio. Ele está destruindo os últimos vestígios que conseguimos conservara com a esperança de que eles pudessem ser os brotos de uma nova cultura.
O que me impede de ser totalmente pessimista, é que, simultaneamente, a esses movimento que podem, de fato, destruir os vestígios da cultura pré-colombiana, sente-se um movimento inverso de refluxo para as civilizações desaparecidas. Não se deve ver, nesse fenômeno, uma tentativa de retorno utópico e quimérico à idade pré-industrial. Mas é impossível imaginar que na era pós-industrial, a espiritualidade de culturas arcaicas e imemoriais possa emergir de novo? Vocês se lembram da fórmula Zen? "A Montanha é Montanha. A Montanha não é mais Montanha. A Montanha volta a ser Montanha".
L´Express : Você quer dizer que lá, os homens são diferentes? Eles não sabem ler, não têm televisão, sabem apenas olhar, escutar, sonhar,... coisas que nós esquecemos?
Scorza : Eles sabem muitas coisas que nós não sabemos mais. Eles estão próximos da terra. E eles prevêem o tempo, por exemplo. O grande romancista cubano Alejo Carpentier me contou uma história extraordinária. Há, na Venezuela, um grande rio que se chama Orenoco. Conhece-se perfeitamente suas cheias. Pode-se prever seu comportamento. Lá existe uma comunidade religiosa, estabelecida fora da zona de inundação. Um ano, um índio veio e disse aos padres: "vocês estão vendo aquelas montanhas? Vocês devem se instalar lá no alto porque, este ano, o rio vai subir até aqui". Os padres lhe responderam: "que você está falando? Você está doido! Nós estamos aqui há vinte anos.
-Ah! Bem! Eu apenas dizia isso ..." E, naquele ano, o Orenoco subiu até o pé da montanha. E os padres estiveram prestes a morrer afogados. Alguns meses mais tarde, os padres encontraram o mesmo índio: "Bem, nós reconhecemos que você tinha razão. Mas como foi que você soube que o rio ia subir até lá? - Ah, é muito simples: porque as cobras puseram seus ovos nas árvores e eu converso com cobras".
L´Express : Essas faculdades excepcionais do índio, que está mais próximo da natureza, é o que fascina hoje, na sua opinião, o ocidental, à procura de novas culturas?
Scorza : Eu não creio. Eu não tenho certeza - e o próprio Marx escreveu no "Manuscrito de 1844" - que o homem, originalmente, só tenha tido cinco sentidos. E o homem tem, talvez, dez ou quinze. Mas ele não sabe mais disso. Os homens que eu conheci, sim, sabem-no ainda.
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